De  Em Nome da Vida – Portugal e o Cancro

Força, Marco!


(...) Inicia-se a recolha da medula para o auto transplante com que irá dominar-se a doença desta criança (...) Força, muita força, Marco! - gritamos-lhe em silêncio (...) E findam cerca de duas semanas de cativeiro (...) Marco ri (...) A mãe diz: ontem à noite não se deitou enquanto não conseguiu voltar a fazer sozinho uma conta de dividir igual à da irmã”.
(...) O rosto do Marco ainda está pálido. Às segundas e quintas-feiras faz o controlo do auto transplante. Durante cem dias será assim. (...) Cem dias, mãe? É muito tempo...
Mas logo compreende a importância desse tempo.
Força, Marco!


Um dos maiores inimigos da mulher

(...). Rita dorme um sono calmo. (...) A mama é ressecada (...) Rita vai saber lutar.
Estamos na enfermaria no dia seguinte, à noite.
Rita. Essas forças?
É mais uma batalha para eu vencer. Nunca tive descanso na vida.
(...) Bem hajam por me terem visitado. Desabafar ajuda à cura.

 

Uma voz perdida, uma fala nova

(...) Albano, funcionário dos hospitais. António, empregado de mesa. Os ombros erguem-se-lhes num gesto de mágoa e resignação. António fumava desde os 15 anos, dois maços por dia. “Falta de juízo”, diz com o indicador levado à cabeça. E as mãos abrem-se-lhe a significar: “Agora já não posso voltar atrás.”

No meu bloco ficam os desabafos. Fica a voz que estes homens perderam.  

(...) Gente que sobre o silêncio da laringe morta constrói a vitória de uma fala nova (...)

 

Ganhar o maior desafio

Uma palavra pode ter mais força do que todos os remédios. Porque o doente precisa de quem o ajude a olhar a realidade sem lhe magoar a esperança. (...) Precisa de quem o sinta um ser humano íntegro. Total. (...) Passa por esta atitude de defesa da condição humana o maior desafio que, porventura, se coloca, hoje, à abordagem do doente oncológico. Envolve especialistas, família, amigos, a comunidade, os governantes. Um envolvimento a que todos nos devemos obrigar.

 

Corino Andrade

Excelência de Uma Vida e Obra
Capítulo I

Infância e Adolescência

Duas horas de um dia acolhido no regaço alentejano e histórico de Moura. Junho, 10. Ano de 1906. É rapaz. Mário Corino da Costa Andrade nasce e chora o choro de todos os meninos quando se apartam do cordão umbilical. Os pulmões do menino respiram, entretanto, o ar da casa. Os olhos do menino, arredondados, de um castanho meio escuro mas vivaz, ainda não descobrem o mundo, todavia o mundo tem, a partir deste momento, um homem que irá projetar-se mundialmente pela inteligência, lucidez, tenacidade e pelo saber clínico científico; um homem voltado para a permanente descoberta do ser total.
Em 1939, volvidos apenas 33 anos sobre o seu primeiro encontro com o planeta de tantas e tão paradoxais civilizações, Corino Andrade está na pista de uma nova entidade patológica, envolvendo especialmente os nervos periféricos. Descobre-a, após aturadas investigações, com parcos recursos. E descreve-a, magistralmente, em 1952, na prestigiada revista inglesa Brain, no artigo intitulado Uma Forma Peculiar de Neuropatia. A paramiloidose entra, assim, nos rumos científicos universais. Novos rumos, iniciados por um cientista português.
(...)

Beja: Tempo de crescer

Terra de barros vermelhos, Beja é a primeira grande escola de Corino Andrade. Começa a andar e a falar, mexido, curioso, atento. Uma infância normal junto dos pais e da irmã. Rita, a tia-avó (materna), conta-lhe histórias e lendas que o deslumbram. A mãe Amália, discreta, porte mais austero, zelosa, amiga, recata-se no lar, lê o jornal de fio a pavio, interessada pelas notícias da roda terrestre. A lida familiar ocupa-a, portas dentro do 17 da Rua de Alcobaça, mas sabe organizá-la metodicamente e raro é sair à rua, sequer para fazer compras. Quando precisa de um vestido, de uma saia ou de um casaco, a costura realiza-se no domicílio. Outros tempos, de uma educação e comportamentos sociais arreigados a conceções tradicionalistas e rígidas.
O pai, Francisco, veterinário formado em Lisboa, único especialista que então cobre o Alentejo e Algarve, afaga as suas crianças mas não faz cedências a dadas regras conceituosas. A filha, Alzira, conclui a instrução primária. E, obediente ao perfil feminino da época, fica por casa. O filho, Corino, torna-se o companheiro do médico-veterinário, que cedo se apercebe do fascínio do pequeno pelo conhecimento das coisas, das pessoas, da natureza e dos animais. A vida profissional paterna tê-lo-á, naturalmente, influenciado, todavia, na génese de Corino as perguntas, os porquês são uma torrente sobreposta à típica curiosidade infantil.
(...)
Corino Andrade entra para a escola primária no ano letivo de 1913/14. Frequenta o colégio particular «Maria do Céu», em Beja, quando o mundo se agita e se transforma num campo sanguinário, bravo. Aprende a ler num tempo ferido e pejado de cadáveres. Rebenta a Primeira Grande Guerra. Numa sala de aulas bejense, Corino soletra o abecedário, junta as letras pequeninas e grandes, e às letras adicionadas com agudeza acrescenta a sua observação das gentes que mondam trigais, amanham as terras, guardam os gados e da magra jorna fazem a açorda e os papos-de-anjo para um dia festivo. Lê jornais com os pais. Apreende o mundo, estranho mundo. Mas o olhar largo e fundo de Corino jamais será tentado pela pieguice gratuita ou pela demagogia. Forja-se no desassombro, na coerência aliada a uma constante reflexão; molda-se na dignidade. Corino olha mais longe. As planícies alentejanas dão-lhe a primeira noção de amplos horizontes.
(...)  

 

Capítulo VI

Paramiloidose de Andrade
Uma Particular Forma de Neuropatia Periférica.

À frente de Corino Andrade uma mulher de 37 anos, moradora na Póvoa do Varzim. Chamo-lhe Lai, aqui. Ano de 1939. Começa a funcionar o Serviço de Neurologia do Hospital Geral de Santo António (oficializado em 1940, mas ainda sem internamento próprio). Uma consulta externa bissemanal, ao fim da manhã, numa acanhada sala emprestada pela Homeopatia. O dr. Corino observa Lai. Tinha a «doença dos pezinhos», que o povo bem sabia que o mal apanhava os pés e não deixava caminhar. E esse nome lhe deram as populações na sua sabedoria mais pura. Os pés de Lai, em especial os dedos, perderam sensibilidade à dor e à temperatura. E há paresias e atrofias musculares e interósseas. Distúrbios gástricos. Emagrecimento. A pele quase sem vida. Este caso veio, depois, a constituir o processo nº 1 do arquivo clínico do serviço de neurologia daquela unidade hospitalar no Porto.
Um martelo de reflexos, o oftalmoscópio, o diapasão, um medidor de força das mãos, um compasso para avaliar a sensibilidade dos pontos neurológicos (propriedade de Corino Andrade). Uma caixa-arquivo portátil. Uma chave, um alfinete, um pedaço de algodão. Alguns recursos improvisados. E a tenacidade, a argúcia do neurologista Corino. Uma espantosa capacidade de discernimento. Irreverente e ao mesmo tempo meticuloso. Interrogativo ao ponto de impacientar os que o olham de soslaio (...).
(...)
“A ética, o rigor científico, a dúvida metódica, as pesquisas, as correlações, a investigação sistemática são leis fundamentais no profissional já solidamente estruturado, sobretudo na escola francesa.
(...)
“Lai responde às perguntas do neurologista português recém-chegado ao Porto. Uma maneira diferente de questionar o doente para obter o máximo de informação útil. Corino liberta-se de conceitos e preconceitos absurdos e caducos. O doente é um todo indivisível, que tem de ser olhado na sua globalidade física, psíquica, social e cultural. Em Corino Andrade, a observação direta afirma-se como o grande exame, a grande colheita, o grande passo, senão mesmo o passo decisivo para se equacionarem fatores de molde a encontrar-se o valor exato, o valor relativo ou o valor diferenciado, ou mesmo um novo valor das incógnitas (...).

(...)
“A síndroma neurológica e a história clínica de Lai fazem Corino Andrade pensar, desde logo, numa entidade patológica que não se encontra descrita; que lhe parece não enquadrar-se nos diagnósticos acostumados: lepra nervosa e avitaminose, os mais pronunciados; alguns ousam dizer: siringiomielia. Havia que analisar, afincadamente, todos os casos que se apresentassem.
(...)
“Até à divulgação internacional da Doença de Andrade, muitos passos Corino dá, procurando, procurando, procurando a ordem e a desordem de uma doença por classificar ou mal classificada. Ao mesmo tempo que, a pouco e pouco, forma uma pequena equipa, entre os anos 40-50, remando contra marés e superando ventos adversos (...). Equipa que foi crescendo, numa visão multidisciplinar surpreendente na época. E ainda hoje.”
(...)


Capítulo IX

 

“ (...) Corino gosta de conviver em sua casa; espaço eleito para estar com a família e os amigos. E com os gatos e cães e patos e galinhas. E com peixes, que entram no cenário caseiro mais tarde. Memórias fascinantes. Um dia...
“Um dia, a pequena filha, Mali, chorava desgostosíssima! Corino dá-se conta do desaire. A garnisé, a “senhora garnisé”, devia ser apetitosa e o cão da vizinha abocanhou-a Come-lhe um pedaço do peito. Mali não pára de chorar. Corino pega na garnisé, improvisa um pequeno bloco operatório e faz intervenção cirúrgica de urgência à “senhora garnisé”. Salvou-se. E Mali: “Fiquei a admirar imenso o meu pai”. De outra vez, um pato irrita-se com uma galinha. Se meias medidas, o pato persegue a galinha e atira-a para o lago do quintal. Como galinha não é pato, nadar não é com ela e o afogamento era a vingança do safado patinho. Uma aflição, os miúdos assustados. O dr. Corino socorre a náufraga, massagens de reanimação, género “cuidados intensivos, e a galinha volta a respirar e fica a recuperar na cama das bonecas (...)
“Corino Andrade, “um pai amicíssimo”, dizem os filhos (Zé Miguel, Mali e Cali).
(...)


Capítulo X

 

Interrogativo. Porque o conhecimento nasce da interrogação. E o desejo de conhecer é, em Corino Andrade, o eixo em torno do qual se move a sua vida e obra. Reflexivo. Porque a reflexão é a matéria-prima da inteligência. Cético atuante. Porque o ceticismo ativo modera os excessos e conduz à análise aprofundada. Lúcido. Porque a lucidez permite a crítica e a autocrítica que fortalecem o discernimento e as relações; porque a lucidez verifica as realidades e acolhe o sonho na medida suprema da criatividade. Obstinado. Porque a teimosia, em Corino Andrade, gera o futuro, antecipa-se ao futuro. Autoritário, enquanto homem de liderança, que orienta equipas com um incontornável sentido de exigência, rigor e disciplina, mas sem qualquer atitude persecutória. Áspero, quando a firmeza implica uma palavra cortante, implacável contra a mentira e atitudes torpes. Tenaz. Porque a tenacidade fomenta a perseverança e a perseverança dá consistência às ideias e aos projetos. Visionário, enquanto entusiasta e alguém que tem uma incomum perceção do mundo e uma invulgar visão (e previsão) das coisas. Insubmisso. Porque sólido nas coordenadas de retidão que traçou para o seu caminho. Enérgico. Porque avesso à tacanhez e à prepotência do comodismo. Perturbador. Porque sadiamente incómodo. Isento. Porque a isenção é mãe da justiça e da seriedade. Solidário. Porque essa é a matriz de um ser íntegro. Corino Andrade, um homem com defeitos e virtudes, de bem com a sua coerência. De bem com a amizade e o amor e a responsabilidade na estrutura familiar, no plano de amigos, na relação com os outros. Com paradigmas inscritos no alfabeto da pluralidade e da liberdade.  
O perfil de Corino Andrade está contido nestes predicados, que de apologético têm a incontroversa verdade de um caráter que sabe criar a unidade da vida com a diferença da obra que projetou, ergueu e consolidou; e que sabe criar a unidade da obra com a diferença da vida que escolheu viver em harmonia com os seus mais arreigados valores profissionais, cívicos, culturais e afetivos. (...) ”


(O Professor Corino Andrade morreu com 99 anos, a 16 de Junho de 2005, três anos após a realização desta biografia)



ENTREVISTAS  |  EXCERTOS


De  Poetas Visitados  

Albano Martins:

O discurso do amor é tecido de silêncios e de pequenos gestos. São esses gestos e esses silêncios que o poema tenta captar. Por outro lado, se o corpo é o objeto do desejo, é dele que a escrita busca apoderar-se, cingindo-o nos seus impulsos e no seu secreto esplendor.
...
Partilho a opinião dos que afirmam que a poesia não serve, é servida. O único combate do poeta é com as palavras. (...) São elas, as palavras, que engendram, que promovem o sentido (é a isso que se chama pensamento?) do discurso poético. Por isso digo: é com as palavras que o poeta se confronta ou debate na realização do poema.


Ana Luísa Amaral:


O pessimismo fez sempre parte de períodos de viragem (como o nosso). Com esse pessimismo, o medo, o receio de que o que vem possa estragar o que existia antes. Embora concorde com o facto de as Humanidades parecerem estar a perder terreno face à Ciência, convenhamos, cada vez mais se encontram cientistas a citar obras literárias... Isso era muito pouco comum, antigamente.
...
O mundo mágico da literatura existiu sempre. E existe. Quantas vezes gostamos de um poema sem o entender bem, só pela sua musicalidade, por meia dúzia de palavras. A magia está aí: no incompreensível e, contudo, belo.


António Osório:


Fui durante alguns anos advogado de questões criminais. Mas é tão confrangedor apercebermo-nos do que os homens são capazes de fazer... Preferi outras causas. O Direito do Ambiente é hoje a área que mais me apaixona.

...
(...) O erotismo não tem idade. (...) O imaginário também não tem idade (...)


António Ramos Rosa:


O poeta não é um homem que se aceita. Je me suis inacceptable (Sou-me inaceitável, disse um outro poeta. Também ando numa deriva à procura daquela outra coisa que quero encontrar e que talvez encontre, uma outra coisa que está em tudo, em cada coisa, mas que ninguém vê porque existirá misturada na poeira da existência.
...
O grito é inerente à criação poética. Vem de longe. O primeiro homem que viu o mundo ficou assombrado e talvez tivesse dado esse grito.


Armando Pinheiro:


Para mim, poeta (ou com pretensões a isso), médico que estagiou durante perto de dois anos, como interno de dia e de noite, nos sanatórios do Caramulo, como médico auxiliar e broncologista durante sete anos no Sanatório Rodrigues Semide, como médico broncologista durante 16 anos no Sanatório D. Manuel II (posteriormente Dr. Eduardo Santos Silva), a “Montanha Mágica” permanece e impõe-se como uma obra sem paralelo no sentido humano, psicológico e até político, além da beleza literária rara que nos impressiona.
...
O único modo de manter o sorriso é olhar os que amo e me sorriem, “procurar a beleza que não morre”.


Casimiro de Brito
:

O homem é um mistério; o prazer também. O meu conceito de mistério prende-se sempre com o amor e a morte. Há os que dizem que o amor fica reduzido quando se tiram os véus. Penso o contrário: quanto mais se desnuda o Outro mais coisas ficam para desnudar. Tem a ver com o aprofundamento, a intensidade, a entrega absoluta, essa a fase que estou a viver. Levámos séculos a pensar que o mistério estava longe. Afinal está em nós, ah! mas é difícil descobri-lo. Sondá-lo é já tarefa bastante.
...
(...) Vivo intensamente a questão do mundo como labirinto; mas também a do labirinto como deserto. Em poesia podemos tomar o caos da vida e resumi-lo a um grão de areia. Mas, ao mesmo tempo, cada grão de areia é um universo.


Cruzeiro Seixas:


Toda a vida é uma metáfora. Mesmo parados já somos uma metáfora, mas, quando damos um passo e entramos na sociedade, mais nos apercebemos de que tudo é metafórico. Todos os nossos gestos são metáforas, não há nada que seja claro e translúcido e simples como o vidro.

(...) O que nós precisamos não é de submarinos, é de uma boa estrutura cultural.
(...) No mundo de hoje, um país não ter armamento parece quase escandaloso; é tão escandaloso como era há 40 ou 50 anos falar-se em perder as colónias ou haver os divórcios que se dão hoje. Estamos num período angustioso, bate-se muitas vezes com a cabeça nas paredes sem se saber bem o que se está a fazer. Confio ainda, mesmo sem ser otimista, em que há de aparecer qualquer dia um caminho, um mundo novo. 


E. M. de Melo e Castro:

(...) O romantismo esteve certíssimo no seu tempo. Mas o nosso tempo já não tem as mesmas coordenadas culturais, humanas, económicas, sociais. E não podemos, em nome de um suposto excesso de sentimento, deixarmo-nos arrastar. Estamos hoje, contudo, numa época de releitura. A figura de retórica fundamental na passagem do século XX para o XXI é a releitura. Nunca em nenhuma época a releitura foi tão importante como agora.
...
Se a arte não for arte, não é nada. E para ser arte precisa de ter uma especificidade que a distinga de tudo. É por isso que às civilizações só restam as obras de arte e não as políticas dos políticos ou os dinheiros dos economistas. A vandalização de obras de arte equivale à destruição do futuro de uma cultura.


Gastão Cruz:


O poema não é bem o grito, é o eco do grito, mas não existe sem esse grito. Quer dizer: a poesia não é a vida mas não existe sem a vida. O poema é um som do mundo.
...
Sente-se no ensino um abandono dos valores literários e dos valores estéticos em proveito de um tipo de texto mais imediato e mais utilitário.
O problema é que os próprios professores de Português também não são devidamente preparados; o ensino universitário é muito deficiente em relação a essa preparação.

(...) Mas também tenho encontrado professores de Português entusiastas e capazes de motivar os seus alunos. E isso faz a diferença quando visitamos uma escola, porém, na maioria dos casos, não sucede assim.


João Rui de Sousa:

A poesia (toda a arte) pode funcionar como sublimação. Uma sublimação que se prende, todavia, com uma dualidade fundamental: a descoberta e a invenção. Descoberta do que está oculto, do que está ainda para lá do nevoeiro. Invenção do que se tornará uma realidade nova, uma nova construção.

...
(...) A função dos jornais e das revistas (como da rádio e da televisão) não é andar à procura do frequente mau gosto do público; é a de tentar melhorar o nível cultural desse mesmo público. O atual conceito economicista da maioria dos meios de comunicação social redunda no pensar-se exclusivamente em lucro, esquecendo a função cultural que devem ter, para além da informativa.


Joaquim Pessoa:

Cada vez definimos manos a nossa vida. Somos uma espécie de matraquilhos comandados por uma mão qualquer. Espero que se encontrem soluções de libertação. Creio ser por meio da assunção de uma entidade cultural que o homem poderá libertar-se.
...
Já fui um homem sem preocupação nenhuma em relação a Deus. Ando, hoje, à sua procura, em quê, onde? Não penso em Deus como um senhor de barbas, vestido de branco, de braços abertos. A procura de Deus é o sentido último das coisas, o primeiro e o último; o tentar compreender-me a mim mesmo, saber qual o meu lugar aqui. Será difícil que um poeta não faça essa busca. O homem não pode achar-se sozinho num mundo feito com os outros. 


José Manuel Mendes:

No afeto e na relacionalidade vivemos permanentemente de constâncias e de ruturas.

...
O futuro terá sempre filósofos, poetas, narradores. Negar-se-ia sem eles. Seria o brevíssimo epilegómeno a uma mutilação sem horizonte após. Impensável, não? Filósofos e poetas contra o império dos dogmas. Mas também a sustentarem a congruência das suas opções. Nenhum dogma me terá cegado. A não ser numa qualquer passagem ilúcida que mal recordo. Por isso digo, por exemplo, que não alieno nada do que é a minha memória das lutas que empreendi ou daquelas a que me associo, buscando sem tibiezas a renovalidade das coisas.


Manuel Alegre:


Existe uma crise de referências no nosso país, que é grave. O nosso país, como dizia Oliveira Martins, foi sempre um produto da vontade de uma elite aliada ao povo; nos grandes momentos, nos momentos decisivos, houve sempre uma vanguarda nacional. Foi a elite que fez o País. Deparamos hoje com uma grande crise de elites em todo o lado, da política ao futebol.
...

O mar é o elemento essencial da minha identidade (...) Não somos explicáveis sem perceber a nossa atlanticidade (...)
(...) É preciso não voltar as costas ao mar. E estar na Europa sem esquecer que a nossa especificidade cultural é inseparável da nossa relação com o mar. Na Europa do mercado e do poder, Portugal não conta. Mas conta na Europa da cultura e da abertura ao mundo. Seremos tanto mais fortes na Europa quanto mais intensa for a nossa ligação com o Brasil e com os países africanos de fala portuguesa.

 

Manuel António Pina:

O amor é a única coisa capaz de sobreviver e a única coisa por que vale a pena que sobrevivamos. O amor no seu mais vasto sentido, naquele que S. Pau lhe dá na Primeira Epístola aos Coríntios, quando diz que vai indicar um caminho que ultrapassa a todos.
...
A justiça é prima afastada, muito afastada, do Direito. O Direito visa mais a segurança do que a justiça. Muitas das soluções do Direito são, por razões de segurança, assumidamente injustas. Vejam-se, por exemplo, institutos como o da prescrição ou o da caducidade.


Teresa Rita Lopes:


Os velhos tinham um papel no seio da família e da sociedade. Eram ouvidos, Agora são apenas tolerados, quando são. E, porque ninguém os quer ouvir, a maior parte deles deixa de ter que dizer. Para uma sociedade que preza a ambição, a combatividade, a eficácia, os velhos são demasiado vagarosos. Vão ser o grande problema do futuro com as pessoas a viver mais uns 30 anos para além da reforma. Um mundo melhor (virá? passa pelo convívio das diferentes gerações. E por uma vida em que haja mais “vagar de ser”.
...
As reformas do ensino estão a ser ditadas pelo mesmo critério com que, nas empresas, se reduzem os custos para aumentar os lucros. (...) Mal do jovem que perde a sua juventude condicionado desde sempre pela angústia de não estar a apetrechar-se convenientemente para ganhar a vida!

 

 

antonio gedeao

Síntese de um encontro histórico com António Gedeão

Os seres humanos continuam como eram há séculos e séculos. (...) O homem de hoje faz tantas barbaridades como o das cavernas.
...
Tudo se transforma e tudo se destrói. O nosso planeta também há de desaparecer. (...) Ficará em pedaços.
...
Como animais, morremos e acabou-se. O ser humano no entanto não se conforma com isto.
...
(...) Sei que tenho de morrer, faz parte do mundo animal. Se fosse uma planta teria outras ideias. O homem quer defender-se de ser animal. Mas é. Diferente, pois sim, como uma cabra é diferente de um elefante e do homem.
...
Só escrevi aquilo que achei poder ter alguma importância e essa não será ficar nos anais da literatura mas no pensamento das pessoas que leram essa obra. Isto é independente de a pessoa que escreveu a poesia estar viva ou morta.
...
Hoje, a poesia apenas diz alguma coisa a certos grupos, independentemente de a valorizar ou desvalorizar. Não se presta a ser fixada nem recitada. Não dá para se comunicar às massas.
...
Fui sempre muito interiorizado, todavia não cabisbaixo ou amuado. Interiorizado, no sentido de meditar.
...
A senhora quer-me confessar, mas não me confesso.

 

POESIA |  EXCERTOS

De  Dança de Matisse  (Poemas de Maria Augusta Silva)

Silêncios do Caos

Silêncios do caos, irmãos de astros ímpios
confundidos na consciência que vai calando
a nossa páscoa. Deixou de haver laranjas
no quintal, e tanta é a falta, já reparaste? Só
as vislumbro numa redoma de cristal
de que não sei o tempo nem a forma. Se tempo
houve, pertenceu-nos e desfez-se nos milénios
das sombras, no filho que dorme junto
aos pastores, dorme e destapa os silêncios
do caos. E nós, tímidos espantalhos, não
sabemos abrir as portas da prisão


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Licor de Hortelã

São nossas as bocas derramadas
sobre o corpo
sedes de alvoradas em que negamos
o cansaço
e um licor de hortelã se descuida
nas estrelas.
São nossos os corpos coalhados
de um espanto
que nos detém no sobressalto
da queda


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Êxtase

Um êxtase impronunciável no quarto
onde comemos o pão-de-ló.
A cama aberta, uma colheita de frutos
sobre os joelhos dia quatro, a maçã
mordida na tensão dos improvisos.
São Francisco de Assis em cima
do mogno, não sei se caridoso ou fascinado.

Seremos animais do seu desvelo?
Seremos animais abandonados?


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Sem Importância

Cuidado com o azeite - dizemos
no mesmo impulso espalhando
as compras do mês pela varanda.
Na fragilidade deste dizer
há qualquer coisa de vago e enigmático.
Aflição do lar ou sabedoria dos mortos
que partilham a nossa mesa?
Some-se entretanto a luz da tarde
- os frutos maduros contam
a nossa história sem importância


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A Casa

É neste silêncio que toda
a casa
se enche de nós. Um deus
clandestino
vem dar-nos a taça e o vinho.
Por um momento
acredito na ressurreição
das pedras


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Dança de Matisse

Convoca-me para uma dança
de Matisse
unidade de sal e luz na rotação
do sopro
que resta. Sossega o golpe do choro
não chorado.
Dança até o corpo ser indecifrável


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Antes e Depois do Amor

Lembro-me
(ou imagino que me lembro?)
de uma rosa antes do amor
e depois do amor.
Os olhos a morderem a rosa
eternizando
astros indomáveis. Uma bruxa
a varrer intrusos, uma fada a multiplicar
o acerto do prazer.
Lembro-me
(ou imagino que me lembro?)
da caneca do chá a seguir
a todas as rosas, o colar de pérolas
na penumbra.
Lembro-me do espelho
estilhaçado por um choque brutal
de temperaturas
(ou imagino que me lembro?)


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Casaco de Lã

Dói-me o casaco
de lã preta nas mãos.
Dor como deve ser a dor
das crias abandonadas.

Mas chegas, pegas-me
no casaco, sorris.

Amo-te


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Bach

Dá-me os remos, pescador.
As redes
já se enfiaram nos meus pés
estão
a sangrar os meus pés. Dá-me
os remos
sinal do barco, um búzio, pode
ser o búzio
esse sinal. Então irei pela beira
da lua
com um búzio a devolver-me
a Bach


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Insubmissos

Dias tenho em que me afundo
na terra
como toupeira escavando sonos
longos.
Pertenço a esse reino de procura
esperando
encontrar dálias na tua urna. Dálias
e a sinfonia
guardada na caixa verde, fecunda
identidade
do amor que nos fez insubmissos


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De Vez Em Quando

Não voltou a aparecer o homem das tesouras.
De vez em quando, um assobio flauteado
atravessa a casa. Em olhares me alongo
pela rua, até ao fundo da rua, porém do homem
de afiar nem flauta nem sombra. Só a rua.

Um rumor faz-me criança, suavemente


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Tejo

O Tejo não era rio, era um cão grande.
Mordia a terra se não ouvia o avô cantar
entre as searas. Ladrava ao céu
ladrava e criava subterfúgios dramáticos.
Eu pensava: está bêbedo. As pessoas
também arranham as sombras do corpo
quando estão bêbedas. Houve
uma páscoa em que o Tejo não arranhou
a sombra não mordeu a terra. Enrolou-se
numa paisagem de cinza. Ficou assim
a vida inteira. E eu a dizer a vida inteira:
creio nas saudades dos cães


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