Grande e inesquecível Manuela 

Jornalista Manuela de Azevedo


O triunfo inevitável da morte jamais, Manuela, impedirá a celebração da memória e da saudade. Por instantes, roubo-lhe o seu bem-amado Camões, questionando e respondendo: – Que levas, cruel Morte? – Um claro dia.
A Manuela, exemplo de vida, de profissionalismo, de luta (quantas lutas!) por nobres causas, foi (é) «um claro dia» que perdurará na história do jornalismo português, na nossa cultura, na conduta cívica, pois fortuna outra não quis que não a de um carácter íntegro, jornalista competente, sábia.
Ao longo dos 106 anos, que completaria a 31 de Agosto, e mais de 60 em distintos jornais (do República ao Diário de Notícias), passou, naturalmente, por contentamentos e tormentas, sacrifícios e venturas, asperezas e reconhecimentos, recriando, afoita, o jeito de viver mesmo quando — e volto ao seu bem-amado Camões — Vai-se gastando a idade e cresce o dano.
Não houve, ainda bem, danos que lhe diminuíssem a inteligência, a riqueza da lucidez, a determinação, avessa a bajulações.
Trago hoje aqui algumas lembranças das lembranças sem conta que somámos no nosso convívio. Recordo um dia na bela e poética Constância. A Manuela andava, girava, girava, passo miúdo, animado, resoluto, explicando-me tudo, pormenor em pormenor, a propósito da Casa-Memória de Camões (que tanto lhe deve), e eu a respirar fundo para lhe acompanhar a caminhada, pedindo a Camões que em seus cuidados me acudisse, de contrário finava-me e adeus reportagem. Camões, porém (muito justo), protegia mais a Manuela do que a mim. De repente, a Manuela volta-se: quer ajuda, Maria Augusta? E eu a disfarçar: já pedi a Camões… E lá fomos descansar uns minutos, olhando o rio.
(Permita-me um parêntesis: os lugares, as pessoas de Constância ganharam igualmente lugar no meu coração ao reportar, também para o DN, a inauguração da Casa Museu de Vasco de Lima Couto, poeta e ator que conheci, apreciava, e de quem me agradava falar com o meu querido colega e saudoso amigo João Aguiar).    
Pronto, Manuela, regresso a si. Estamos nos corredores da (antiga) redacção do DN, na Avenida da Liberdade. Cavaqueando um bocadinho para nos aliviarmos da pressão esgotante, mas apetecida, de um jornal diário. Peripécias sem fim de reportagens, entrevistas, da abordagem de temas intemporais como o da eutanásia, artigo que o lápis da Censura lhe matou em 1935 (e o Museu Nacional da Imprensa, sob a direção de Luís Humberto Marcos, acolherá agora, conforme noticiado). Falamos de escritores, artistas, de cultura no seu mais amplo significado, de ensino, política, sobretudo dos superiores direitos e deveres do povo, essa entidade (e identidade) que o jornalismo, independentemente da modernidade tecnológica e de novos modelos de informação e comunicação, deve colocar na primeira linha da sua missão; a Manuela não se cansava de o dizer e assim proceder.
Nestas tagarelices, perguntava-me coisas sobre a minha adolescência e primeira etapa adulta em Angola (Luanda): as relações sociais, o meio cultural, económico, a guerra colonial, a descolonização, o retorno, a paixão maior pelo jornalismo. E mergulhávamos depois nas nossas infâncias em Mangualde (a sua infância e juventude entre Viseu e Mangualde), nós, crianças em épocas diferentes, no entanto com idênticas vivências, fortalecendo os pulmões com beirãs aragens.
Às vezes, a Manuela parecia o meu marido, ambos lisboetas, todavia encantados pelos predicados mangualdenses. A Manuela chegou a saber que em Mangualde se construiu uma praia nas redondezas da Senhora do Castelo? Uma praia!, Manuela. Faltou-nos essa à nossa infância. A velhice do corpo adoentado foi-me tornando ausente do meu berço mas não desunida daquele chão. Os meus primos (Tonito e Mila), enraizados em Mangualde dos pés à cabeça, vão-me mantendo atualizada sobre essa nobre terra hospitaleira, pois, de facto, e a Camões recorro: todo o mundo é composto de mudança / tomando sempre novas qualidades.
Manuela, grande e inesquecível Manuela, recupero entretanto a última vez que nos encontrámos à porta da Casa da Imprensa, as duas com a pele serenamente enrugando-se, apoiadas por uma amiga parceira a que damos o nome de bengala ou canadiana, coxeando, coxeando… Trocámos fraterno beijo. Os meus olhos incontidos, salgados; os da Manuela enternecidos, corajosos. E Camões no rebuliço do Chiado, espreitando-nos do alto da sua linda Praça, vendo-nos a idade a gastar-nos, apesar disso cronicamente resistentes.
Imorredoura a sua obra, Manuela, em prol de valores essenciais às sociedades, aos países, ao mundo. Todas as distinções que a justiçaram ao mais alto nível, testemunham um imperativo de consciência. Como sublinhou a atual presidente do Sindicato dos Jornalistas, Sofia Branco, a Manuela de Azevedo «era uma figura singular». Por ter sido, em Portugal, a primeira mulher jornalista com carteira profissional, sim; porque se reformou com 85 anos, livra!; porque era a mais antiga repórter à escala mundial (após a morte, em Janeiro deste ano, da inglesa Clare Hollingworth), mas em particular pela forma séria, briosa como exerceu a sua carreira e o labor literário (do ensaio ao conto, da dramaturgia e do romance à poesia). Desejamos que se concretize, em homenagem a si e em nome do património cultural, o projeto em que estava apostada: o de reunir em livro duas centenas de cartas de personalidades com as quais privou.  
Felizes os que puderam beneficiar do seu trabalho, da sua camaradagem e, até, de um ou outro conselho, sem pretender impor-se, apenas oferecendo-nos uma reflexão, um pensamento sensato, um pensamento de liberdade feito. Da minha parte (de muitos, com certeza, e de diversas gerações), obrigada, Manuela. Excelentíssima, como gostava de tratá-la.
Termino como iniciei: o triunfo inevitável da morte jamais, Manuela, impedirá a celebração da memória e da saudade.

MARIA AUGUSTA SILVA
10 de Fevereiro, 2017




0 santo espírito DN


Dezembro de 1978, entro pela porta giratória do matutino da Avenida da Liberdade, encaminho-me para o elevador de lagartas que haveria de levar-me ao alto primeiro andar da redação na qual me ia integrar a convite de Mário Mesquita. Dão-me uma palmada nas costas. Era o meu primeiro chefe das lides jornalísticas, Jaime Figueiredo, velha raposa que já em Luanda gostava de pregar-me rasteiras. Gritou-me: Maria, esse elevador tem o espírito do Augusto de Castro, às vezes cai. Pelo sim pelo não, agarrei-me à força das minhas iniciadas trinta primaveras e galguei as escadas, duas a duas. Assim foi anos a fio até as artroses dos cinquenta me aconselharem cuidados, que o melhor seria apanhar o dito do espírito ou o outro «elevas», fechado, que de repente parava a meio... (Está tudo modernizado, ainda bem).
Fiquei a trabalhar na Informação Geral, depois baptizada de Sociedade. Não tardou a falarem-me novamente do espírito DN. Uma noite calhou-me piquete, apitaram telexes, última hora: jovens apanhados por águas alteradas de um rio português. Morte em foco. Linguado na máquina de escrever, vá de esgalhar para o jornal não atrasar-se. O então chefe da secção, Zé Valente, espreitou as primeiras linhas para ir avançando o título da peça e recomendou: Não mate logo as pessoas cruamente, há um espírito DN, é melhor uma coisa do género: foram ao encontro da morte. Bolas, outra vez o espírito! Contavam-se os segundos para o fecho da página, nervos em farrapos, procurei argumentar com lead incisivo e apeteceu-me pedir-lhe para ir dar uma volta a meio da noite como era seu hábito a meio da tarde, murmurando uma frase enigmática enquanto ajustava os óculos ao rosto arredondado: Vou ao carro. Aquela do espírito dava-me voltas ao miolo. Também não podia escrever-se suicídio. Ninguém se suicidava mesmo que sim. Só valia a morte de «causa desconhecida.»
Entretanto, destacaram-me para as reportagens do Natal dos Hospitais e das Construções na Areia. Esta última, afirmava-se como uma iniciativa DN que aproximava o jornal de diferentes gerações, pais que haviam sido crianças concorrentes, filhos que desejavam honrar prémios ganhos pelos seus progenitores. Uma festa nas praias de norte a sul do País. Duro para quem tinha de reportar e encher todos os dias páginas e páginas sobre o acontecimento. Razão sobrava a camaradas como Vítor Rato ou Roberto Cordeiro habituados àquele xarope. Apanhei num verão com toda a zona sul, quilómetros e quilómetros, diariamente, de praia em praia. Passava-se pelo sono num ponto fixo, estafa indizível. O repórter fotográfico, Fernando Farinha, aliviava o seu e o nosso cansaço com as suas inconfundíveis gargalhadas. O motorista e o colega encarregado dos cálculos das marés e colocação das estacas rebentavam pelas costuras. Uma ou outra vez, só tínhamos disponível a carrinha do DN que levava a malta e as bicicletas destinadas aos vencedores. Parecíamos sardinha enlatada. O Fernando com a gota a morder-lhe os joelhos e abastecido de banhas, acomodava-se no banco da frente; eu, peso regular e ginasticada, encolhia-me nas traseiras, entre os ditos prémios, tentando pedalar em seco para as pernas não ficarem dormentes. O Fernando gargalhando: Maria, este é o espírito DN, eu a retorquir-lhe vai pró diabo mais o espírito. Outra e outra praia, toca a vestir as crianças com as camisolas DN, os miúdos puxando da veia criativa, as ondas não raro a fazer das suas e a desmoronar as obras de arte, vá de recomeçar mais acima, por fim o júri a apreciar talentos, a decidir, o chefe Fernando Pires em Lisboa de olho implacável no relógio temendo que a reportagemchegasse atrasada, eu acabando por pedir ao espírito DN que não fosse torto e me fizesse aguentar nas canetas. Dessa etapa, fim à vista em Tróia, ali ancorados ao entardecer para no dia seguinte encerrar-se o circuito sul.
Faltava-me uma: o coordenador das construções na areia, o amigo Tibério, fazendo contas a custos e poupanças combinara dormida troiana numa espécie de suite: dois quartos para os homens da equipa, quatro, um par em cada cama, e lá dormiria a Maria num estreito sofá plantado num pequeno espaço de passagem, sem porta alguma. Virei bicho. Reclamei um mínimo de privacidade. Tibério não vira mal naquela decisão, naturalmente. O Fernando Farinha propunha: troco contigo, Maria, durmo no sofazinho. Mas, perguntava eu, e o outro colega que deveria dormir contigo?, não cabem os dois neste sofá. Dormimos no chão, é o espírito DN como na tropa, um por todos, todos por um, rematava o Fernando com mais uma vibrante gargalhada. 
Fiz uma rebelião. Vim para a entrada do hotel, sentei-me no passeio, entrei em greve, escurecia, e o amigo Tibério deslocou-se a Lisboa certamente para colocar o caso aos senhores do dinheiro, dos patrocínios e tal. Ordem nocturna: Um quarto onde cada um pudesse dormir em sossego e fizesse a sua higiene em paz. Terminei a greve. Acho que o espírito DN me agradeceu a rebeldia, ele também dormiu mais tranquilo e tomou banho asseado.
A partir daí reconsiderei um pouco sobre o proclamado espírito DN. Não seria de todo sacripanta. Tínhamos de o enfrentar e confrontar.


Noite no Parque Mayer

Imaginem a cena. Marcaram-me um trabalho para a estreia de uma revista no Parque Mayer. Findo o espetáculo, toca a entrevistar espetadores, atores. A peça tinha de ficar escrita nessa madrugada, ordem rígida, pois outra reportagem me estava agendada para o dia seguinte. A noite tornara-se muito noite. Bloco na mão, temi seguir a pé, sozinha, para o jornal, embora não fosse longe. Optei por tomar um táxi: nem um! Terminada a sessão, todo o mundo os apanhara. E um sujeito qualquer, metido num luzente carro, abrandou, perguntou-me se queria boleia, descaradamente adiantava uma quantia, um preço, subia a parada, subia, subia, muito mais do que o meu salário, eu cheia de medo sem mostrar que o tinha, telemóveis não havia, quem me acudia? A criatura insistia, eu, calada, com vontade de lhe atirar o meu bloco ao focinho mas lá se iam pormenores da reportagem, o espírito DN ficaria de rastos, o Fernando Pires fuzilar-me-ia a paciência. Pensei, pensei no espírito DN e eis-me a entrar num táxi, respirando fundo. O espírito estava a melhorar a olhos vistos... 


Trovoada, ai santo espírito!

Na velha sala verde do Diário de Notícias funcionou muitos anos a Informação Geral que a modernidade batizaria de Sociedade. Quando jogava o Benfica, colocava umas bandeiras a torcer pelo glorioso com o Silva Pires e o Zé António Santos a torcerem comigo ou eu com eles, o Faria Artur a acalmar os ímpetos, o Manuel Dias a espreitar-nos se os nossos pulmões faziam chegar um goooooo-lo a todos os cantos do jornal. E nos períodos escaldantes da política nacional pós 25 de Abril ou por outros motivos da vida do jornal, a sala verde atingia o rubro em plenários (chamados por nós de «apolinários»). Ninguém era santinho, não. Fases houve de grandes tensões. À distância do tempo, penso que alguns extremos devem ser analisados serenamente, situando-os nos devidos contextos da História, circunstâncias, paixões exacerbadas. Lembro-me de renhidas competições entre listas para os conselhos de redacção do DN. Contavam-se as «espingardas» uma a uma, o Beltrão Coelho, perspicaz q.b., porque davam-se casos caricatos: alguns colegas (não muitos) subscreviam todas as listas candidatas, normalmente duas, argumentando que subscrever não era apoiar..., queriam «viabilizar democraticamente» as candidaturas. Na escolha de delegados sindicais já não se verificava tanto fervor, ser delegado sindical dava mais chatice.
Mas o verdadeiro e grande espírito DN sobrevivia, revelava-se nas grandes causas coletivas ou pessoais.
A sala verde comunica com a Avenida da Liberdade por meio de largas janelas, dir-se-ia uma parede de vidro. Na Informação Geral, as secretárias eram quase todas de madeira, velhotas mas espaçosas. Quando trovejava, que pavor!, pavor que me ficou de criança e permanece. Só a minha mãe conseguia acalmar meus medos, acariciando-me a cabeça. No DN, ao primeiro relâmpago e trovão (trovão mesmo trovão, não era o Fernando Pires nem o Antunes Ferreira às turras connosco), eu enfiava-me debaixo da minha banca, enroscada como uma gata, clamando em surdina pelo espírito DN, pelo seu lado fraterno. O Zé David Lopes preparava-me água açucarada, o Zé António dos Santos e o Silva Pires corriam para o meu pânico, sossegando-me: Maria já não troveja, enchiam-me de mimo, passavam-me as mãos pela cabeça, pareciam a minha mãe, hoje a minha mãe já não está, e choro.


Sábados da má-língua

De facto, a sala verde do DN tinha fama e proveito. Propus que uma vez por mês, para atenuarmos a pressão do trabalho, realizássemos o sábado da má-língua. Aprovado. Ao fim da tarde de um sábado, com páginas fechadas ou quase, dávamos uns dedos de conversa, mastigávamos o pão saloio que me cabia sempre levar, outros petiscos que cada um resolvia por bem acrescentar; sabiam a pouco as azeitonas do António Cadavez, mais a pinga que o Cadafaz de Matos rapinava ao sogro. Esse sábado da má-língua obedecia, porém, a um regulamento escrupuloso: era proibido falar-se do jornal e de quem estivesse ausente. Prevaricador pagava multa, um escudo. Está mesmo a ver-se como uns encontros iam dando para as despesas do seguinte... O Faria Artur, sorriso matreiro, atento, procedia à cobrança da multa, mas também ele às vezes tinha de a pagar. Isento ficava o Vitor Rato, perdão fiscal por ser o responsável pelo cozinhado dos enchidos, papel que desempenhava com mestria. Camaradas das outras secções podiam participar na tertúlia; estou a lembrar-me do Oscar Mascarenhas a antecipar-se: pago a multa, pronto!
Não se tratava de nenhuma conspiração, sim um jeito de a brincar refletirmos sobre questões sérias e de nos libertarmos por instantes da escravatura das batidas dos títulos (quantas vezes se perdia um belo título por ter uma ou duas batidas a menos ou de sobra, o que fazia Simões Ilharco enrolar mais o caracol que lhe caía para a orelha e telefonar ao pai (jornalista da velha guarda), queixando-se e pedindo-lhe sugestão que desse a medida certa. As novas tecnologias haveriam, a partir dos anos noventa, de nos salvar dessas apoquentações (em especial com o engenho do José Maria Ribeirinho). Mas nem tudo se transformou em rosas. Milagre das rosas só a Rainha Santa Isabel! 


Da síntese à reportagem

Da síntese à grande reportagem, da pequena à grande entrevista, tudo é fundamental na comunicação social, sejam quais forem os meios (clássicos ou modernos) que levem os assuntos ao público. Profissionais, grisalhos ou jovens, hão-de ter episódios dos que ficam eternamente no coração. Nunca esquecerei reportagens sobre as cheias, sobretudo nas regiões de Loures e Ribatejo. Décadas volvidas, ainda tenho na alma a voz de uma mulher desfeita em lágrimas: Tirem esta aflição de dentro da gente. Outros camaradas guardarão lembranças idênticas, tantos conheci reportando tempestades, incêndios, tragédias sem conta. Recordo, entre muitos, num simples apanhado da memória, sem alinhamento cronológico, a Conceição Lobo numa reportagem notável sobre uma criança que vivia num galinheiro e ganhara expressões corporais de galinha; Mário Ventura em terramotos na Itália, Oscar Mascarenhas no pesadelo de teatros de guerra, Feliciana Ferreira e Rui Coutinho (fotografia) nos temíveis caminhos do Uganda relatando o drama espalhado pelo vírus Ébola; recordo Guilherme de Melo embarcado em helicóptero para as chamas do Chiado, a Cadi Fernandes a dar-nos as mais emocionantes reportagens da guerra em Timor, tantos, tantos excelentes profissionais do nosso DN no terreno, correndo riscos, dando tudo de si em nome de um jornalismo sério, atuante, de um jornalismo que os mestres me ensinaram: não se faz jornalismo de rabo sentado. Recordo outras áreas de ação, a Alda Mafra a coordenar briosamente a Agenda/Preparação do DN, a Helena Marques numa grande direção do jornal, a Manuela de Azevedo (já ultrapassou os cem!), passo miúdo, frenético, dedicando-se a coisas de cultura, a Maria Guiomar Lima cuidando de questões da saúde, a Helena Mendonça em reportagens que denunciavam o trabalho infantil em Portugal, a Isabel Stilwell analisando comportamentos do ser, da sociedade, a Graça Franco vocacionada para a política/economia, a Leonor Figueiredo empenhada na luta contra a sida, a Manuela Alves sem lhe escaparem os meandros do ensino, a Lumena Raposo centrada na política internacional, a Filomena Naves ao lado do Greenpeace, batalhando em defesa do ambiente, da ciência; Paula Sanchez e a Margarida Maria desvendando as manhas da criminologia, Antónia de Sousa oferecendo-nos a sabedoria ímpar do Professor Agostinho da Silva, Alice Vieira a escrever com uma rapidez imbatível.Recordo a Maria Lucília de Matos na tarefa e estopada de fazer o «Ver, Ouvir e Ler», que não conferia estatuto, no entanto seria das secções mais lidas no antigo DN. Tudo isto era o espírito DN, o verdadeiro e grande espírito: o jornal acima de tudo, acentuava Fernando Pires mesmo quando para com os seus botões reconhecia que nos esfolava as forças até ao tutano. 


Monumental queda

Ainda pago as favas desse espírito na canela da perna direita: estava a levar a bom termo um trabalho sobre Almada Negreiros e tinha uma entrevista com o arquitecto José Almada Negreiros, filho do pintor. Saí pela porta da Rodrigues Sampaio, dei uma monumental queda no amanteigado passeio, ferida e dor a valer, sangue escorrendo, nenhum osso quebrado, e o espírito DN a mandar: não sejas piegas. O filho de Almada espantou-se, fui à casa de banho do seu escritório aliviar com água o ferimento e, pronto, a entrevista decorreu com os meus gemidos engolidos. Regressada à redacção, o Albano de Matos aconselhou: se houver aí uma gota de uísque, desinfeta. De vez em quando, nas Artes, comprávamos uma garrafinha que durava muito tempo, bebericávamos quando o índice anímico descia ao grau zero.


O avanço das mulheres

Ao correr do teclado, injustamente estarei a esquecer-me de profissionais que igualmente marcaram as páginas do DN mesmo na década de setenta (nesse tempo não abundavam mulheres na redação) e de camaradas que em décadas seguintes (e continuam), inclusive no fotojornalismo, têm prestigiado a profissão. Peço perdão, não tenho intenção de minimizar seja quem for. Permitam-me, no entanto, expressar um olá à Maria João Pinto, Ana Marques Gastão, Ana Mafalda Inácio, Céu Neves, Elizabete França, Maria João Caetano, Maria João Rocha, Carla Aguiar, Helena Santareno, Maria de Lurdes Vale, Paula Ferreirinha, Ana Glória Lucas, Fernanda Câncio, Helena Garrido, Luísa Botinas, Sílvia Freches, Madalena Esteves, Elisa Fonseca, Eva Cabral, Margarida Bom de Sousa, Paula Cordeiro, Leonor Matias, Margarida Cabeleira, Margarida Bom de Sousa, Marina Pinto Barbosa, Ivone Gravato, Paula Sá. Ainda às repórteres fotográficas Ana Baião e Alexandra Silva. E um saudoso abraço à Maria José Margarido (dramática e tão prematuramente desaparecida do nosso convívio). Tenho na alma outras mortes de colegas do DN que para mim nunca morrerão: Alda Mafra, João Botelho da Silva, Armando Rafael, Roberto Cordeiro, João Galamba de Oliveira, Álvaro Gomes, Vítor Coutinho, Rebordão Correia, Martinho de Castro, Jaime Figueiredo, José Estêvão Santos Jorge, Encarnação Viegas, Oliveira Figueiredo, Mário Ventura, Eduardo Tomé, Manuel Rodrigues (o “Manel Pincel”), Vítor Rato, Daniel Lam, Acácio Barradas, Pedro Sousa Dias, Figueiredo Filipe, Mário Bettencourt Resendes, Guilherme de Melo).
Com todo o respeito pelos movimentos e importantes lutas em defesa dos direitos da mulher, não se julgue que estou aqui a falar mais do «mulherio» no nosso DN por ter costela feminista ou considerar que existe uma escrita no feminino superior ou mais sensível do que a dos homens (conheci jornalistas, homens, escrevendo com sensibilidade única). Dou tão-só um singelo testemunho de como se foi notando a intervenção da mulher nas várias profissões, no jornalismo em particular, ressaltando áreas como economia, política e desporto outrora quase exclusivamente tratadas pelo sexo masculino. Uma coisa sei: aprendi muito com todos. E o DN pode orgulhar-se de ser, nas suas virtudes e defeitos, uma excelente escola de jornalismo.     


As delícias tecnológicas

Depois da «revolução» que foi passar o DN do grande formato para o tamanho que mais ou menos tem hoje, outra evolução empolgante: redação informatizada nos princípios dos anos noventa. Que limpeza, que rapidez... com o reverso da medalha: adeus tipógrafos, os jornalistas a terem mais tarefas nos seus ombros, da escrita à formatação, etc. Mas não podíamos perder o futuro. Rendi-me. E hoje sem computador estaria morta. A morrer haveria de ficar um dia com os olhos desesperadamente colados ao ecrã do Atex. Acabara de botar ponto final no fecho de uma reportagem e surge o Martinho de Castro a cumprimentar-me com um molho de jornais debaixo do braço; num fragmento de segundos, os jornais caíram no teclado, o texto sumiu-se, qual salvamento qual quê, qual guardado que por segurança ia fazendo amiúde, meu querido espírito DN, acode-me!, mas o espírito se calhar ainda não estava adaptado às maravilhas tecnológicas, os informáticos não atinaram com a minha desventura, tive de escrever tudo do princípio ao fim. Livra!


De coração aberto

Jorge Sampaio, então Presidente da República, foi operado ao coração em 1996. A chefia delineara um dossier a propósito. Cabia-me entrevistar um conceituado especialista em intervenções do género. Tudo a postos, devia seguir para Coimbra no dia tal mas deram-se alterações inesperadas. Telefonaram-me para casa (estava de folga): Arranja rapidamente outro entrevistado de craveira, a peça tem de ficar pronta para ontem... Jornalismo diário e o grande espírito DN, sempre tudo para ontem.
Vou para a redacção, estabeleço contactos, e consigo que esse carismático e memorável nome, Professor Jaime Celestino da Costa, (então com 80 anos, decano dos cirurgiões cardíacos em Portugal), me recebesse prontamente. Uma entrevista marcante pelo saber, arte médica, vastíssima cultura, elegância no trato, disponibilidade sincera, afável, e uma personalidade humanizada até à emoção. Pedira entretanto à chefia que me garantisse apoio na desgravação das cassetes, apesar de me valer das notas que registava nos meus inseparáveis blocos em estenografia muito própria. Claro que sim, garantiram-me.
Qual apoio, qual quê?! Para adiantar trabalho segui a técnica de redigir a longa entrevista ao mesmo tempo que a desgravava. Quatro da manhã, o meu marido, Pedro Foyos, igualmente jornalista no DN, vendo-me esgotada, dispôs-se a ajudar-me na desgravação e foi marcar um quarto num hotel perto do jornal para eu ir descansar umas duas horas e ele iria depois repousar também um bocadinho. Fui, descalcei-me, não tinha outra roupa, estiquei-me na cama, sono nem vê-lo, relaxei, levantei-me por volta das seis, tomei duche, lavei a boca com bochechos. O Pedro chegara, tirou os sapatos, deitou-se, eu desci para retomar a tarefa. Na receção do hotel trocaram-se olhares... Coisa de malucos deviam ter pensado; nem sei como terá ficado a minha reputação... Grande espírito DN!, mas disso os rececionistas nada percebiam.
O Professor Celestino da Costa habita hoje no infinito. Quero dizer-lhe: nunca o esquecerei. E destaco a atualidade que, no geral, mantém a entrevista que me deu. Falávamos de hipertensão, esse «assassino silencioso»: (...) Existem outras possibilidades de controlo, espantosas, que não havia no meu tempo. O hipertenso tem de tratar-se com um médico que perceba do assunto. A hipertensão deve ser classificada (...) terá de ser avaliada por especialistas competentes e torna-se aconselhável medi-la em diferentes posições.
Entendido?


Adeus Amália

Sabem o que é ficar com os pés em chaga? Acompanhei o cortejo fúnebre de Amália Rodrigues a pé, da Basílica de Estrela até ao Cemitério dos Prazeres em Outubro de 1999, e mais tarde a trasladação para o Panteão. As feridas nos meus pés pareciam-me coisa nenhuma se comparadas às lágrimas, à dor de milhares de pessoas numa despedida emocionante. Lisboa chorava a Diva do fado. Na redação, a Maria João Seia embrulhou-me os pés numas toalhas com água fria. Grande espírito DN. E vá de escrever a reportagem, recordando também Amália viva, a entrevista que lhe fiz em 1985, dela citando uma resposta sem rodeios: Entre uma pessoa bem-falante mas oca de sensibilidade e uma outra sem discurso mas sensível, prefiro a última.
De jornadas que me queimavam os pés (a mim e a outros camaradas), recordo ainda e entre outras, o funeral de Sá Carneiro. Dessa vez, porém, calharam-me as cerimónias no Mosteiro dos Jerónimos. O espírito DN foi nesse caso bondoso para mim, e também em visitas papais, poupou-me a marcha pela cidade fora, esses trabalhos, até pela sua especificidade eram divididos por mais companheiros. Como em tudo, importava (importa) o rigor dos factos, a imparcialidade no relato, a escrita escorreita para todas as camadas de leitores. O espírito DN funda-se aí.


O fim do Sol para Saramago

Tinha diante de mim aquele homem alto, magro, polémico (como polémico foi, por exemplo, numa direção do DN), a quem a palavra utopia não agradava, romancista consagrado em 1998 com o Prémio Nobel da Literatura. Telefonemas atrás de telefonemas, solicitando entrevistas. A mulher, Pilar, também a chamar-lhe a atenção para compromissos assumidos para aquela noite, ou seja a nossa entrevista não poderia prolongar-se muito. Saramago, imperturbável, a surpreender-me: A Maria Augusta pergunta o que quiser, demora o tempo necessário para o seu trabalho. 
A entrevista assinalava, em novembro de 2000, o lançamento do seu livro A Caverna (cheio de símbolos). Perguntei-lhe: Acredita que o mundo acabará? Fiquei pasmada com a resposta: Não sei quando mas é inevitável. O Sol apagar-se-á um dia. A questão de Deus existir ou não ainda se pode discutir. Agora, acha que o Sol é eterno? Sendo um gerador atómico, quando se lhe acabar o combustível, morrerá. Tudo acaba.
Meu caro Saramago, que susto me meteu! Maior do que o da trovoada...
(O meu camarada João Céu e Silva haveria, anos mais tarde, de realizar para o livro Uma Longa Viagem com José Saramago, um documento biográfico na modalidade de entrevista, sem dúvida uma obra de referência).


Boleia a Eduardo Lourenço

Em dezembro de 2003 fiz uma extensa entrevista a Eduardo Lourenço numa sala da Gulbenkian. Horas deliciosas de conversa com esse gigante do pensamento. Chovia. Frio, muito. E Eduardo Lourenço, terminado o nosso diálogo, pergunta-me: Como é que vai para o jornal? Vou apanhar um táxi, respondi. E ele: Dá-me boleia até à Versailles, na Avenida da República?
Um homem brilhante, imenso na simplicidade e humildade. Um privilégio ter dado boleia a Eduardo Lourenço, que nunca parou de falar e, confesso, colhi daquele instante ainda muita coisa para a entrevista; era fascinante escutá-lo, de tal forma que o taxista sai-se com esta: Posso levá-los ao fim do mundo? E Eduardo Lourenço, espirituoso: Quero ficar na Versailles que já conheço bem. Perguntei-lhe: De que tempos tem mais saudades? Respondeu: Dos que hão de vir e onde eu não estarei.


Um dente à viola

Vou contar-vos mais uma. Tinha agendada uma entrevista (2004) com António Lobo Antunes. Tudo OK, não almocei, resolvi comer uma maçã antes de meter pés a caminho. Trincadela, e zás!, dente da frente à viola, caído aos bocados nas minhas mãos. Que fazer? A entrevista estava programada, socorri-me do espírito DN, que aprendera a conhecer melhor, espírito eclético aquele, e Lobo Antunes arregalou os olhos no inóspito local onde nos recebeu e trabalhava como formiguinha. Pedi-lhe desculpa, prontificou-se a falar de imediato com o seu dentista para socorrer-me, agradeci mas do que eu precisava mesmo era de realizar a entrevista. E pronto, horas de conversa. Recordo uma pergunta que lhe fiz: Sente-se um homem livre? Resposta que permanece atual, talvez intemporal. Homem Livre? Sim, na medida em que, do ponto de vista profissional, só faço o que quero. Ninguém me condiciona. Nunca aceitei subsídios. Sou livre em relação a qualquer poder. Mas sou consciente das minhas limitações sociais, como todos os portugueses ou italianos ou seja quem for. Estamos condicionados por interesses económicos que nos transcendem e manipulam.
De volta à redacção, José Manuel Barroso disse: Escreve para duas páginas. Contestei. Duas não me compensam a vergonha e o esforço, vê como fiz a entrevista, desdentada, dorida... Ele riu-se, num riso meio sério meio a rir, sentou-se, falou: não vais ao dentista, escreve primeiro, três páginas, vá...


Recordações para sempre

Esta súmula de memórias sobre três décadas que vivi no DN não a faço por saudosismos destemperados. Mas tenho saudades de muitos momentos e a saudade é saudável. A memória também. Nunca poderei esquecer quando, numa luta contra a morte, o espírito DN tanto me apoiou, um espírito de equipa, de camaradagem. E só posso continuar a dizer: Obrigada. Ocasiões menos felizes, poucas, também as senti e essas, sim, são passado morto. 
Desculpem-me pessoalizar estas recordações, não por vaidade ou pendor narcisista, antes uma maneira de melhor contá-las, partindo de vivências de um eu para abarcar o todo possível, porque todos sinto neste encontro, incluindo os de um passado não tão longínquo: olá Eurico de Barros, Nuno Galopim, João Miguel Tavares.
E perdoem-me guardar para fecho deste texto lembranças de duas reportagens no DN que marcaram a minha vida profissional. A «Década do Cérebro», 1993, e «Cancro em Portugal», 1994. Se é verdade que me orgulho dos prémios que distinguiram esses trabalhos, nomeadamente o Prémio Internacional de Jornalismo Rei de Espanha, Prémio Abel Salazar (da Associação de Jornalistas do Porto) e Prémio Gazeta do Clube de Jornalistas, não menos me confortam as manifestações de apreço, as palavras da equipa DN, sem esquecer colegas das delegações que tanto me estimularam e acompanharam numa vertigem de Norte a Sul, alargando as pesquisas à Madeira e Açores. (Olá, Viale Moutinho, Alfredo Mendes, Paulo Coutinho, Ursula Zangger, Amin Chaar, Soares Rebelo, Fernando Madaíl, João Fonseca, Luís Carregã, Paula Martinheira). E daqui envio o meu abraço imenso a Álvaro Tavares que esteve comigo em muitas etapas, desde logo a fotografar a primeira reportagem para a «Década do Cérebro», uma neurocirurgia realizada pela equipa do Professor João Lobo Antunes, bem como a «viagem pioneira» em Portugal a um tumor cerebral por meio de neuroendoscopia, intervenção dirigida pelo Professor Pratas Vital e o urologista Hélder Monteiro. Abraço extensivo a António Aguiar, Leonardo Negrão, Bruno Peres, Sandra Costa.


Um cimbalino, carago!

Um dia, chegada de comboio ao Porto, tarde outonal, dirigi-me a um café próximo da delegação do DN e pedi um garoto clarinho e morno para me aquecer o peito. Os rapazes do balcão riam, eu voltava a pedir um garoto clarinho e morno, riam mais. Apareceu inesperadamente o Amin Chaar, máquina fotográfica à maneira, e perguntou que se passa? Disse-lhe que só queria um garoto clarinho e morno para me aquecer o peito. Então o Amin, querido Amin, diz aos jovens empregados: «Tragam um cimbalino, carago!» Salvou-me a honra.
Dessa série de grandes reportagens, a do «Cancro em Portugal» é daquelas que continuo a escrever no mais íntimo de mim, sentindo-me ínfima ao pensar na «coragem dos inocentes», sentindo-me inútil relativamente à prevenção de fatores de risco que falha incrivelmente na (in)consciência dos cidadãos, sentindo-me frustrada por os cuidados continuados e paliativos permanecerem muito aquém daquilo que a dignidade humana reclama.
Nestes trabalhos sobre o cancro e as neurociências, não calcularão o quanto me enriqueci e mais humilde me tornei ao privar com vultos como os Professores José Conde, Mário Bernardo, Pratas Vital, Corino Andrade, João Lobo Antunes, João Jordão, Diamantino Gomes, Cláudio Cunha, Mário Vilhena, Margarida Mendo ou Cardigos Castanhinha. É indescritível a fortuna espiritual que recebi das falas com os doentes, no acompanhamento do zelo da enfermagem, no amor do voluntariado.
Por último, e mais uma vez, o grande e verdadeiro espírito DN a mostrar a sua face límpida. A lembrança do dia em que me foi atribuído o Prémio Internacional de Jornalismo Rei de Espanha. A informação chegara à redação estava eu a almoçar numa cave do Bairro Alto com o Fernando Pires, António Castro e Maria Guiomar Lima, preparando uma lista para a administração da Casa da Imprensa. O meu marido, Pedro Foyos, pediu aos camaradas do DN para ser ele o primeiro a dar-me a notícia. Correu para o Bairro Alto (não tínhamos telemóvel) a ver se me encontrava, mas não. Num restaurante, exausto, pediu um copo com água, o simpático servidor de almoços mandou-o sentar, perguntou-lhe se estava a sentir-se mal, ele disse ando à procura da minha mulher, eo empregado comentou: mande-a dar uma curva, o senhor ainda é de bom tempo... O Pedro regressou à redacção sem mim. Quando cheguei a meio da tarde, vejo a malta apinhada, palmas, eu sem nada saber, julguei que o diretor, Mário Bettencourt Resendes, estaria a falar às massas, parei, o Pedro aparece-me: querida, não sei como dizer-te... Ele costumava comprar uma cautela, pensei que lhe tivesse saído a sorte grande, não, não, tu ganhaste o Prémio... e eu a tapar a cara com um casaco de novembro, a tapá-lo também a ele: «Que vergonha, isto é para os «apanhados!» Os camaradas festejavam, comiam e bebiam celebrando, abraçavam-me, o Fragoso Mendes tentava convencer-me, o Mário erguia-me quase até ao tecto, o espírito DN ali em força. Demorei horas a acreditar. Para mim, o prémio cabia por inteiro ao nosso DN. Quando um ganhava, ganhávamos todos. Assim deve continuar a ser, penso.
Ao despedir-me do DN (2005), deixei cheia a taça com rebuçados que há muitos anos tinha em cima da minha secretária nas Artes/Cultura. Que significava essa taça? Camaradagem, mulheres e homens, grisalhos e jovens. O grande e verdadeiro espírito DN: camaradagem.


© MARIA AUGUSTA SILVA






Sou um homem alegre, sem um olho...

... e (quase) feliz

TESTEMUNHO DO ESCRITOR ERNESTO LEAL
RECOLHIDO APÓS OPERAÇÃO A UM MELANOMA NO HOSPITAL EGAS MONIZ


Tenho agora 81 anos, assino-me Ernesto Leal, sou major reformado do Exército e, pelo último decénio e meio, tenho sido escritor a tempo inteiro.
   Há quinze anos, julgo, sentei-me à mesa pelas 3 horas da manhã para lançar ao papel umas linhas que fervilhavam na cabeça e me impediam de dormir. Vi, com surpresa, todas as coisas enevoadas. Chamei-me a mim próprio desleixado e fui lavar os óculos com sabão e água corrente. Ao regressar à secretária, mais perplexo me achei. Tudo continuava envolvido no mesmo nevoeiro. Mau, disse para mim, isto é mesmo da vista. Reclinado na cadeira, pus-me a cismar que poderia ter cataratas. Botei-me a escrever — de momento, a prioridade que se me impunha. Aliás, não gosto de me ralar, especialmente ralar-me com medo. Em dois ou três dias, acabada a obra escrita, expliquei à família que precisava de mudar de lentes. Pronto, comecei a via-sacra dos hospitais e médicos, de mão em mão. O caso era «interessante». O primeiro físico enganou-se e diagnosticou uma catarata. O segundo viu certo: um tumor do corpo ciliar (massa muscular que rodeia o cristalino) do olho direito. Tive de ir a Coimbra, ao Porto, quiseram mandar-me para a Alemanha, ao que me recusei. Acabei por ser operado em Lisboa por uma equipa fabulosa, imbatível, chefiada pelo professor Ferraz de Oliveira, no Hospital Egas Moniz. Seis horas no bloco operatório. Um pouco antes de perder o conhecimento veio um médico que me tomou o pulso e disse: Está bom, está perfeito. Sorri-me. Vencia na perfeição o meu desígnio de não me ralar. Ralem-se eles, os médicos, que se esfolem, que transpirem: eu, não! Nesta operação, tiraram-me o tumor para salvar o olho; na operação seguinte, uma semana depois, por decisão tomada em junta médica, a equipa de Toscano Rico tirou-me o olho para me salvar a mim. É que o tal tumor — um melanoma — era danadamente perigoso e podia propagar-se para o cérebro através do nervo ótico. Embora sem olho e sem um bocado do nervo ótico, também removido, ainda me aplicaram cobalto em 28 ou 29 sessões. Tudo meticuloso. Tudo nos trinques. A vida é um bem precioso.

Um doente, como fui neste caso, está em melhores condições para encorajar os mais ou menos saudáveis. Como eu trabalhasse, por altura do sucedido, na Repartição de História Militar, o general diretor e muitos camaradas encheram-me o quarto do hospital em consecutivas visitas. Tempos depois, quando recomecei o trabalho, disse-me o general: Sabes? Naquele dia em que te fomos ver, íamos para te animar, mas foste tu quem nos animastes!

Dez anos depois, comprei um computador. Com ele já produzi uma peça de teatro que subiu à cena no Estúdio do Trindade. Nele já meti mil páginas de uma História de Portugal em preparação. Sou quase feliz. Sou um homem alegre, sem um olho. O «quase» é só por causa do Portugal que temos, mas essa é uma outra história.

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Ernesto Leal, sempre tão discreto que ninguém deu pela sua morte, em abril de 2005.


© MARIA AUGUSTA SILVA





Abençoados!

Ponha-se o leitor no meu lugar e verá como, eventualmente, não ganharia para o susto. Ou seja: anda uma serena criatura em aturadas e profundas investigações, a saltar de hemisfério em hemisfério, por via de umas massas estranhas à bolsa dos miolos, e eis senão quando dá de caras com algumas coisas de ficar a falar sozinha o resto da vida.
Até chega a topar com um sistema simpático (haja Deus!), que mantém conversações de estado permanentes com o senhor Córtex e o menino Hipotálamo, mais a senhora Hipófise e a menina Dura-máter. Às vezes zangam-se, dão coronhadas uns aos outros, mas lá se vão amanhando entre umas fissuras e umas protuberâncias, enquanto o bulbo (não confundir com bobo) tenta safar-se sempre alegremente, animando o pedúnculo, mais os feixes, os neurónios e restante família.
Parece uma festa. Há pirâmides e tudo (e pensava eu que, pirâmides..., só no Egito!). Somos, de facto, uma raça de gema. Muito evoluída. Surpreendente. Com uma cabecinha invejável: Até dá gosto vê-la.
Só que, de repente, essa serena criatura, na circunstância eu própria em carne e osso, descobre que tem em funcionamento no seio de toda esta científica confusão, nada mais nada menos que um par... de cornos.
Francamente!
Não me contenho e telefono de imediato para o meu impagável clínico e amigo Zé, predestinado a ouvir-me até ao fim dos meus pecados terrestres e extraterrestres, possivelmente.

— Olha lá, que história é esta, afinal tenho um par de cornos?
— Pois, não te assustes, os feixes entendem-se com eles.
— Os quê, os peixes?
— Arre! qè surda, a mulher. Feixes! Feixes!
— Quais feixes, qual carapuça! Só quero saber porque é que eu tenho um par de...
— Calma, minha filha, tens mais pares, sossega e respira fundo.
— Mas qual calma! Quantos pares tem a cabeça normal de um indivíduo?
— Doze pares cranianos... mas...
— Ora, doze sabia eu, e como se uma dúzia não chegasse, pimba!, aguenta mais este, e coração ao alto.
— Aguenta e podes dar-te por muito feliz...
— Feliz? É uma felicidade dos demónios!
— Ó minha vertigem destravada, não é dos demónios, é dos neurónios. Nunca te falaram dos cornos anteriores e posteriores?!...
— Anteriores e posteriores. Ainda por cima! E tu a saberes de tudo, meu amigo há vinte anos...
— Sigilo médico, evidentemente.
— Ena pá! Arranco-te um neurónio pelas unhas dos pés!!!
— Ó minha célula tresmalhada, esses cornos fazem parte do sistema...
— Claro, fazem parte do sistema, pudera!
— Irra!, minha mandíbula enferrujada, fazem parte do sistema nervoso.
— Do sistema nervoso, que engraçado... Quem não ficaria com um sistema nervoso, com dois ou três ou meia dúzia de sistemas nervosos, depois de descobrir uma coisa destas?!

Ufa!, apesar de tudo, quanto vale ter um amigo para nos acompanhar nestes momentos de inflação sintomática e diagnóstico reservado!
Está a rir-se? Ponha-se no meu lugar... Que susto!
De qualquer forma, fica já prevenido para o caso de alguma vez ser assaltado (longe vá o agoiro!) por uma protuberância desta natureza. Homem prevenido vale por dois, e, mesmo que não tenha ao seu dispor um médico catita para o aturar, saiba, a partir de agora, o seguinte: está rigorosamente provado e comprovado que todo o perfeito e honrado cidadão tem cornos anteriores e posteriores. Porque, se os não tiver, é bem possível que esteja prestes a arrumar o seu lindo par de botas...
Por tudo isto, abençoados!
E nesta conformidade, meu prezado e atento leitor, muita saudinha é também o que mais lhe desejo na companhia de quantos lhe são queridos.

© MARIA AUGUSTA SILVA





O quarto 311


Quatro paredes baixas, maquilhadas de um verde quase a desmaiar, tinham por especial missão policiar os meus passos, ao mesmo tempo que me embiombavam a alma como se fosse proibido, a qualquer hora do dia ou da noite, ter a mais leve ousadia de deixar por um só instante o corpo sem espírito.
Era o quarto 311, algures, longe, muito longe do meu chão e da minha água, mais longe ainda do meu oxigénio de todos os dias, que são os amigos inteiros. Aproximava-se o momento de apostar na vida ou não. Mais uma vez, esse momento. Os olhos habitualmente serenos de um companheiro de sempre pareciam, de repente, um oceano ajoelhado aos pés da esperança. Eu, na dor antecipada da carne rasgada, interrogava-me se valeria a pena a tortura e o risco.
Concluiu o poeta que tudo vale a pena se a alma não é pequena. Outro responde-nos que a maravilha da vida é tudo nela ter justificação.
Os poetas sabem o que dizem melhor que ninguém. Meu pai, poeta anónimo que de sol a sol escrevia nas sementeiras a justificação da vida, procurava assim dar razão a Torga, embora Torga defenda que um homem não se escreve. Mas o meu pai escrevia nas sementeiras, de sol a sol, a vida de um homem, a vida de muitos homens. Costumava dizer-me, com os lábios gretados de tanto vento e desencantos, que a altura dos homens devia escrever-se no Bilhete de Identidade não com um metro vírgula qualquer coisa, antes com medidas de grandeza que certificassem a real estatura de um cidadão: honradez e humildade, sonho e justiça, lucidez, amor e coragem. Falava-me muito da coragem dos simples, que apenas agora consigo assimilar por completo.
Foi essa coragem dos simples que habitou o meu quarto 311 durante cerca de um mês e meio, enquanto as ruas se vestiam de frio. Porque a coragem dos simples está para a vida como a levedura está para o bom pão. Porque a coragem dos simples deveria ser disciplina obrigatória em todos os graus de escolaridade. Porque a coragem dos simples deveria ganhar prioridade sobre a filiação e o local de residência no Bilhete de Identidade. Porque a coragem dos simples traduz-se pelo desejo de viver para amar com sonho e verdade, com defeitos e virtudes, com brios e humildades. Tão simples é, afinal, a coragem dos simples! Que bem me faz tê-la herdado, dos cromossomas de meu pai, poeta de sementeiras, sem desvios nem vergonha de o ser, para no meu quarto 311, dolorosamente longe do meu chão e da minha água, e mais penosamente longe do meu oxigénio de todos os dias, que são os amigos inteiros, ter descoberto que lutar contra a morte com a coragem dos simples é o mesmo que lutar na vida pelos valores que deveriam em qualquer Conservatória, Registo Civil, Tribunal, Parlamento ou Sindicato, ou ainda no mais rotineiro encontro de inteligentes mortais, identificar abertamente a real estatura dos homens.
Mas a coragem dos simples terá algum dia a força suficiente para fazer constar no Bilhete de Identidade essa estatura em vez de um metro vírgula qualquer coisa, no estado de solteiro, casado, viúvo ou divorciado?
É sabido que, por regra e padrão de consciência, só depois da certidão de óbito se procura definir a altura que um homem teve... Com os exageros óbvios do óbito, ou seja, com o óbito a tornar óbvios e impunes todos os desplantes e arrojos.
Cá por mim, enquanto puder, tentarei a renovação do Bilhete de Identidade com a coragem dos simples, que me oxigenou o quarto 311, de paredes baixas maquilhadas de um verde (verde-cor-da-esperança!) quase a desmaiar...


© MARIA AUGUSTA SILVA





Galinhas de Cidade


O menino anda na escola. Muitos meninos andam na escola. Muitos outros deveriam andar, mas... E a escola abre todos os anos, no dia que logo se verá, por causa de mais isto e de mais aquilo. Seja como for, a escola existe, não tanto como a desejaríamos; não tanto como seria indispensável para uma escolaridade acessível e harmoniosa em todo o espaço geográfico; não tanto como seria ótimo para toda a gente aprender, de olhos abertos e límpidos, a ler a vida das coisas. Porque é preciso estar por dentro da vida, do mesmo jeito que é necessário habitar a nossa alma para ganharmos a dimensão humana do mundo.
A escola tem de ser a seiva forte dessa alma. Acreditamos nisso.
Mas o menino anda na escola e a professora mandou-lhe desenhar uma galinha.
O menino desenhou uma galinha. Uma galinha sem pescoço, sem asas, sem patas, sem penas, sem bico...
Porque as galinhas do menino são assim. São as galinhas da cidade, em capoeiras refrigeradas, à mistura com sabonetes e guardanapos de papel do supermercado da esquina da sua rua. Porque a rua do menino da cidade também só tem capoeiras de cimento resguardadas com varandas de alumínio e vidro para que o sol não roube a cor à alcatifa, nem a chuva possa borrifar a terra do vaso a que está presa a raiz da trepadeira limitada à altura de um teto baixo.
A escola deste menino tem a vida nos compêndios. Com ilustrações bonitas, em papel macio e passivo. O menino aprende o que pode nessa escola de papel. Aprende o que vê no supermercado. Porventura será doutor e mestre exímio em desenho de galinhas sem asas, sem patas, sem bico...
Um dia, talvez, ao darmo-nos conta desta natureza morta, procederemos aos mais rigorosos inquéritos, com a promessa vibrante de que tudo será averiguado até às últimas consequências. Os responsáveis serão punidos... Quem são os responsáveis?
Responder-se-á, se a coragem tiver a palavra da verdade, que os responsáveis somos todos nós: a escola, a família, a sociedade, as estruturas de cabeça de galinha ou de galo. Ou, quiçá, fica-se eternamente a mastigar a resposta, enquanto se bebe um copo de vinho verde para refrescar o sabor picante de um estufado de moelas, apaladado com orégãos de pacote e salsa moída.
E os meninos vão crescendo dentro da escola de papel. Outros, nem sequer... E os meninos vão aprendendo que há galinhas no supermercado da esquina da sua rua.
...E nós, esse corpo que se esquece de habitar a alma da vida, vamos, alegremente, alimentando a nossa inteligência engalinhada.


© MARIA AUGUSTA SILVA





Mergulhos


Só encontro coisas que me arreliam. Até tenho andado a pensar se tudo isto não estará relacionado com o tal cromossoma 11, que os entendidos das Américas acham que pode arranjar sarilhos, como seja o da psicose maníaco-depressiva. Realmente, há cromossomas que nunca deviam ter nascido. Mas, enfim, adiante.
Pensando melhor, no entanto, esta minha ralação creio dever-se, fundamentalmente, a uma questão de águas e mergulhos. Sinto-me injustiçada. A culpa é toda do senhor Scott Eckert, que teve o desplante de dizer nas minhas costas que a tartaruga é a melhor mergulhadora do mundo, tendo mesmo passado a perna ao cachalote.
O senhor Scott não demonstrou o mínimo de respeito por um mergulho que eu dei aqui há dias, eram para aí uma três da matina. De repente, fiquei cercada de água por todos os lados. Havia muitos tubarões ao sabor da corrente, muitos, muitos, a sério, juro!
Aquilo era um mar de tubarões. Uns mais pequeninos, outros maiorezinhos, mas todos tubarões a erguer a grimpa à tona da água.
Foi uma luta titânica a que travei para não ser uma formiguinha no gasganete dos bichos. Acreditem que é terrível, àquela hora de breu, uma pessoa ver-se rodeada de água por todos os cantos. Ainda admiti que estivesse a ser vítima de uma matreirice do meu parceiro, como aconteceu à senhora Betty, na Florida, cujo amantíssimo esposo a quis afogar numa cama de água, por não ter gostado do penteado com que a dita senhora lhe aparecera na melhor das intenções. É que, precisamente nesse dia, eu também havia mudado de penteado, embora discretamente, porque só alterei o risco ao lado para risco ao meio. Mas nunca se sabe quando um cromossoma 11 pode igualmente atacar um cara-metade nascido e batizado em Portugal. Resumindo e concluindo, a alternativa que me restou foi a de mergulhar, com toda a perícia, num fiozinho de água entre dois tubarões mais magrinhos. Mergulhei (isto fazendo as contas de uma forma muito poupada) a uma profundidade de longe superior a 1500 metros. Menos não foi, de certezinha, segundo me informou um carapau que ali estava escondido — à espera da namorada. Chegada a esses fundos, descansei em paz, enquanto os tubarões continuavam ao de cimo, encantados da vida.
Quando acordei, fui, entretanto, confrontada com o facto de o senhor investigador Scott Eckert ter elegido uma tartaruga como a melhor mergulhadora do planeta. Uma tartaruga que, afinal, só mergulhou a 1310 metros de profundidade.
Ora, não é justo que o senhor Scott não haja tido em consideração este meu mergulho, em circunstâncias até bem mais arriscadas que as de uma tartaruga profissional habituada às marés do Atlântico e do Pacífico.
Com injustiças deste calibre, obviamente que o cromossoma 11 é bem capaz de deitar por água abaixo o mais tenaz dos otimismos.
Senhor Scott, isto não se faz! Eu quero acreditar nas profundidades da investigação...


© MARIA AUGUSTA SILVA





Olá, Luís!

      Luís de Matos e Maria Augusta Silva fotografados por Pedro Foyos em 1992


Tanto tempo, tantos anos, e sinto que foi hoje, será sempre hoje, o primeiro tempo de todos os tempos para conhecer o Luís; para falar do Luís, para gostar muito do Luís. Do Luís de Matos, o mágico mundialmente reconhecido, inovador do espetáculo do sonho em Portugal, todos já falam. Todos aprenderam a descobrir-lhe o talento e o profissionalismo, a fazer jus à sua criatividade e dinamismo. Ainda bem. E nunca será de mais sublinhar o carisma de um dos maiores comunicadores das novas gerações, comunicador de arte, de emoções, do pensamento e do bom gosto. Brioso. Empenhado. Trabalhador. Com um respeito insuperável pelo público. Mas vou antes contar-vos momentos de vivências únicas, que, porventura, melhor dirão do Luís dos bastidores, dos bastidores da magia amada e treinada diariamente, dos bastidores dos afetos que terão vida eterna.

Em 1992, a RTP1 transmitia, ao meio da manhã, o programa Isto É Magia!, de Luís de Matos, ao qual estava associado o mestre realizador Carlos Sá Pereira; havia uma assistência juvenil bem perto de esse outro jovem esguio, traquina, olhos escuros e mãos longas a criarem o truque que faz nascer a ilusão. Pequena ou grande ilusão, não importa. Só importa o instante mágico, eu sei. Nem sempre me era possível, confesso, estar atenta. Àquela hora, na pressa de dar ordem à casa, mastigar um papo-seco e engolir um leite para logo correr a apanhar a camioneta rumo ao jornal, não me sobravam minutos para ver lenços a mudar de cor nem argolas redondinhas como o sol a entrarem e saírem umas das outras. Truque que, e tantos mais, ainda hoje me deixam boquiaberta e danada por não conseguir minimamente descortinar a habilidade e a mestria do mágico.

Numa dessas manhãs, o meu cara-metade, Pedro, desafiou-me: «Vem lá ver este miúdo, come o papo-seco aqui». Ou seja, sentadinha no sofá junto ao televisor, nada ao modo dos meus hábitos. E eu, zás: «Não tenho tempo nem pachorra, desculpa, nem percebo patavina de magia, além de que esse tipo tem umas calças de esticadinho, franzidas debaixo do cinto, é um magricela, maçarico!» Mas a verdade é que espreitei, fiquei com o papo-seco na ponta dos dedos e as pestanas escancaradas, apanhada por aquela criatura que, de repente, me fez prisioneira de um poder encantatório e de uma estética moderna. Resmunguei uma coisa do género «eu já tinha idade para ter juízo, ora esta...». Pois, sim senhor, aquilo tinha de ser estimulado, incentivado, concluiu o parceiro e achei também. O «aquilo» era o Luís que fazia o isto, o Isto É Magia. Encontrámo-nos dias depois no Luso, para o Pedro o entrevistar. A primeira grande entrevista. O Luís chegou atrasado, enganara-se no hotel, foi parar a outro sítio, telefonou sôfrego, preocupado, não havia magia que desfizesse o engano e o atraso, adiante. Aparece-nos finalmente um pinheiro alto, vestido em tons de «bordeaux» com uma gravata de primavera comprometida com uma valsa de Strauss. Fazia lembrar uma vassoura pendurada num cabide no Monte dos Vendavais.

A magia. O Luís de Matos, por mérito próprio, desenvolve uma carreira brilhante. Faz esgotar lotações, em espetáculos consecutivos, de salas como o Grande Auditório do Centro Cultural de Belém. As televisões portuguesas lembram-se dele ora sim ora não, todavia, o mundo internacional chama-o a diversos países, é distinguido, nomeadamente, pela Academia de Artes Mágicas de Hollywood: tinha 28 anos, em 1999, quando a Academia o elege Mágico do Ano; em 1995 distinguira-o com um «Award of Merit». E no âmbito da Expo’98, com 21 espetáculos e uma assistência que ultrapassou as 200 mil pessoas, ganha o prémio mundial do melhor mágico de «close up», atribuído pela International Society of Magicians.

Olá, Luís!

Vejo-te na minha casa, riso bom, um abraço bom. Eu velhota, o Pedro velhote, e tu, naturalmente, a crescer no espaço que te pertence, a que tens direito, pleno direito, esse espaço artístico, inventivo, produtor das ilusões de que todos necessitamos para se conseguir respirar um pouco entre os atropelos das células e dos caminhos. Vejo-te, no chão da sala, que está fria hoje, tempo de muitas geadas. Mas hoje, viro esse frio do avesso, vejo-te e volto ao meu grito de espanto: Os meus talheres, Luís?! Garfos e colheres a entortarem-se, a partirem-se todinhos nas tuas mãos. Luís, e agora? E tu, «agora, já está!» Colheres e garfos como novos, irra, como fazes isso?! Sorrateiramente, ia para a cozinha tentar imitar-te, agora vais ver a artista sou eu! Zumba, colheres partidas sem remédio, garfos torcidos sem remédio. E o teu abraço, «palmas, isto é magia!». Vejo-te, encostado ao guarda-fatos a espantares o vírus gripal dos 39 graus de febre do Pedro, e eu de costura cirúrgica ainda agrafada. Um estrondo! Que é isto, que foi? Aflita. Tu, mão caída, a soltar-se do pulso. Credo! Luís, partiste a mão, como é possível? Como vais assim atuar, amanhã, na Madeira? Corro para o telefone amparando a custo o ventre cirurgiado, meu Deus!, tenho de levá-lo ao hospital, chamo uma ambulância. E tu, «Maria, venha cá, o Pedro marou com a febre, está a delirar, diz que o Diogão tem um prolapso do pénis!, que Diogão?». Catrapus, outro estrondo. Dou uma roda sobre mim mesma. O Diogão é um tartarugo que se tomou de paixão pela «tartuga» Miquelina! Luís, a tua mão..., a tua mão... «Já está boa!», dizes abraçando o meu medo, o meu susto, a nossa amizade, a sorrir. Sorriso mágico. Como é? Tentei partir a minha mão esquerda como a tua, mas logo me apressei a ligá-la com o pulso elástico, bolas... Isto é magia!

      Vingança das vinganças. Havias de regressar da Madeira, monstrinho! Caminha feita, leitinho quente, toca a dormir, Luís, estás estoirado, fecho as madeiras da janela para descansares melhor. Ora bem. Duas da manhã, terrimmmmmm... Três, terrimmmmmm... Quatro, terrimmmmmm... Cinco, terrimmmmmm... Seis horas, terrimmmmmm... Olá, Luís, dormiste bem?

Ainda guardo os cinco despertadores por mim colocados, matreiramente, ao mais alto nível da desforra mágica. E hoje, será sempre hoje, o primeiro tempo de todos os tempos para falar do Luís, do Luís de Matos, com a mesma admiração e respeito e afeto. Isto é magia!

© MARIA AUGUSTA SILVA





Abençoados!

Ponha-se o leitor no meu lugar e verá como, eventualmente, não ganharia para o susto. Ou seja: anda uma serena criatura em aturadas e profundas investigações, a saltar de hemisfério em hemisfério, por via de umas massas estranhas à bolsa dos miolos, e eis senão quando dá de caras com algumas coisas de ficar a falar sozinha o resto da vida.
Até chega a topar com um sistema simpático (haja Deus!), que mantém conversações de estado permanentes com o senhor Córtex e o menino Hipotálamo, mais a senhora Hipófise e a menina Dura-máter. Às vezes zangam-se, dão coronhadas uns aos outros, mas lá se vão amanhando entre umas fissuras e umas protuberâncias, enquanto o bulbo (não confundir com bobo) tenta safar-se sempre alegremente, animando o pedúnculo, mais os feixes, os neurónios e restante família.
Parece uma festa. Há pirâmides e tudo (e pensava eu que, pirâmides..., só no Egito!). Somos, de facto, uma raça de gema. Muito evoluída. Surpreendente. Com uma cabecinha invejável: Até dá gosto vê-la.
Só que, de repente, essa serena criatura, na circunstância eu própria em carne e osso, descobre que tem em funcionamento no seio de toda esta científica confusão, nada mais nada menos que um par... de cornos.
Francamente!
Não me contenho e telefono de imediato para o meu impagável clínico e amigo Zé, predestinado a ouvir-me até ao fim dos meus pecados terrestres e extraterrestres, possivelmente.

— Olha lá, que história é esta, afinal tenho um par de cornos?
— Pois, não te assustes, os feixes entendem-se com eles.
— Os quê, os peixes?
— Arre! qè surda, a mulher. Feixes! Feixes!
— Quais feixes, qual carapuça! Só quero saber porque é que eu tenho um par de...
— Calma, minha filha, tens mais pares, sossega e respira fundo.
— Mas qual calma! Quantos pares tem a cabeça normal de um indivíduo?
— Doze pares cranianos... mas...
— Ora, doze sabia eu, e como se uma dúzia não chegasse, pimba!, aguenta mais este, e coração ao alto.
— Aguenta e podes dar-te por muito feliz...
— Feliz? É uma felicidade dos demónios!
— Ó minha vertigem destravada, não é dos demónios, é dos neurónios. Nunca te falaram dos cornos anteriores e posteriores?!...
— Anteriores e posteriores. Ainda por cima! E tu a saberes de tudo, meu amigo há vinte anos...
— Sigilo médico, evidentemente.
— Ena pá! Arranco-te um neurónio pelas unhas dos pés!!!
— Ó minha célula tresmalhada, esses cornos fazem parte do sistema...
— Claro, fazem parte do sistema, pudera!
— Irra!, minha mandíbula enferrujada, fazem parte do sistema nervoso.
— Do sistema nervoso, que engraçado... Quem não ficaria com um sistema nervoso, com dois ou três ou meia dúzia de sistemas nervosos, depois de descobrir uma coisa destas?!

Ufa!, apesar de tudo, quanto vale ter um amigo para nos acompanhar nestes momentos de inflação sintomática e diagnóstico reservado!
Está a rir-se? Ponha-se no meu lugar... Que susto!
De qualquer forma, fica já prevenido para o caso de alguma vez ser assaltado (longe vá o agoiro!) por uma protuberância desta natureza. Homem prevenido vale por dois, e, mesmo que não tenha ao seu dispor um médico catita para o aturar, saiba, a partir de agora, o seguinte: está rigorosamente provado e comprovado que todo o perfeito e honrado cidadão tem cornos anteriores e posteriores. Porque, se os não tiver, é bem possível que esteja prestes a arrumar o seu lindo par de botas...
Por tudo isto, abençoados!
E nesta conformidade, meu prezado e atento leitor, muita saudinha é também o que mais lhe desejo na companhia de quantos lhe são queridos.

© MARIA AUGUSTA SILVA





Minha gata-poeta

Sábado de Janeiro, fim da tarde.
No canteiro ao fundo da casa havia ainda uma rosa vermelha, tão aveludada que apetecia beijá-la mesmo sentindo-lhe os espinhos. A gata dorme, talvez sonhasse, parece brincar com os seus sonhos. Levanta a pata ágil, puxa a coberta de flanela, troca a posição da cabeça delicadamente redonda, enrosca-se no consolo do sono.
Jovem, tão jovem. Conhecera o abandono ao nascer mas logo encontrou aconchego amigo. Invulgarmente bonita, conquistadora, olhos macios, matreira na sua doçura de fêmea, a Vadiolas cresceu feliz.
Acorda. Ginastica os matizes acastanhados, o peito de rola, branco, a cauda escura, curta, mimada.
Do alto das escadas namora as árvores em seu hábito contemplativo. Demora o olhar para o canteiro das rosas. Gostava da terra onde as roseiras se abriam aos afetos. Remexia-a, deixava ali as necessidades do ventre e devolvia tudo ao asseio.
Sábado de Janeiro, mês dos gatos, dizem. Felinos desconhecidos, outros da vizinhança armam algazarra. Vadiolas vai à roseira. E corre, corre, corre…
Vadiolas! Vadiolas! Vadiolas!
Vã a nossa voz. Buscas sem encontros.
Cobre-se de silêncio a manta de flanela. A comida, a água, o lugar, apenas silêncios.
Hoje, meio ano sem ti, e uma rosa vermelha sempre à tua espera.
Nunca te esquecerei, Vadiolas, minha gata-poeta.

© MARIA AUGUSTA SILVA