EDITE ESTEVES


«VOU CORTAR A NUVEM COM UMA FACA»

Aquilo andava a saltitar-lhe dentro da cabeça. Não sabia bem o que era. Nem bola, nem carro, nem super-homem a voar… Nada dessas coisas com que costumava sonhar acordado. Era uma pergunta sem resposta que o atormentava há uns meses. E não o largava. Decididamente, desde que a avó Becas tinha morrido e, quase de seguida, o avô Luís também fora embora do seu convívio quase diário.

Para onde é que eles foram?

Esta era a pergunta que balançava sem descanso na sua cabecita de quatro anos. Muda. Sim, porque o Pedro não se atrevia, nem para si mesmo, a concretizar em sons o mistério que envolvia tal desaparecimento. Tinha muitas saudades dos avós, costumava dizer, sem dar a entender grande emoção ou curiosidade, e mais nada. Acabava ali a questão. O ronco de um motor de um camião a iniciar marcha preenchia, de imediato, o vazio que os adultos pressentiam no coração do miúdo. A brincadeira espontânea com o que lhe estava mais à mão rasava a forma de uma substituição premeditada, para não pensar naquilo.
Um dia, porém — talvez porque eu tivesse uma idade próxima dos seus avós —, quebrou o silêncio e ousou:

Olha, para onde é que vão as pessoas quando morrem?

Os seus olhos escuros numa tez muito branca fixaram bem fundo os meus, apanhados de surpresa. Não os desviei. Procurei ser o mais natural possível. Como dizer a uma criança de quatro anos que não sabemos dar resposta risível a essa difícil pergunta. Se os adultos, normalmente, sabem tudo… seria natural que não houvesse hesitações.

Vão para o céu, respondi automática.

Será que ele vai ficar por aqui?, interroguei-me, fazendo menção de continuar uma conversa que estava a ter com outros elementos adultos da sua família. A ver se escapava.

E como é que conseguem ir para o céu?! Não conseguem voar…

São os anjos que as vêm buscar, quando elas o chamam. Os anjos têm asas e levam-nas ao colo, como faz o Homem Aranha.

Franziu ostensivamente o nariz. Não gostava lá muito dessa coisa dos anjos, disse entre dentes. Mas avançou.

Todas as pessoas que morrem vão para o céu?!

Sim…

E como é lá em cima no céu?

É tudo muito bonito… As pessoas velhinhas que tinham dores deixam de ter dores e todos são muito amigos.

Há mar?

Há muita água, sim, mas é mais calma que o mar, é assim como nos rios e nos lagos…

Mas, então, se toda a gente vai para o céu quando morre, depois não fica cá em baixo ninguém...

A dúvida era pertinente para a sua tenra idade.

Não é assim, Pedro, porque as pessoas morrem, mas também há muitas pessoas que nascem, tu sabes, por isso há sempre gente aqui na Terra.

Ah, é verdade.

Assentiu com a cabeça. As suas mãos como que seguravam o coração, que devia estar a pulsar a mais de cem à hora. Via-se-lhe nas faces a corarem, a corarem.

Mas, olha lá, as pessoas que morrem ficam sempre no céu? Já não voltam para ao pé de nós?

Aqui é que estava o busílis da questão. Outro mistério por desvendar e eu sem saber como o confessar.

Voltam, sim, aquietei-o.

O seu olhar quedou-se, ansioso. Fui forçada a responder.

Voltam, mas, se calhar, vão para outros lugares…

Mas eu quero voltar para a minha casa, não quero ir para outro lugar.

Tentei uma postura frouxa, procurando parecer não dar importância às suas palavras. Mas o Pedro não se deixou enganar. Queria mesmo esclarecer esta interrogação que lhe bailava lá dentro da alma. E, num repente, chegou a uma conclusão que lhe pareceu ter toda a lógica e deitava por terra todos os segredos da existência.

Já sei. Quando morrer, levo uma faca na mão e, quando chegar lá acima ao céu, corto a nuvem que está por cima da minha casa e caio cá dentro dela. Pronto!


[Ficção suscitada por uma conversa real tida com o Miguel Pedro, de 4 anos]
Palmela, 17 de Agosto de 2015









MANUEL MONTEIRO


LITERATURA

— Só me interessa a literatura.
— Mas não podes ficar aqui para sempre neste buraco. Estás a ouvir o que eu te estou a dizer?
— Sim.
— É o teu melhor amigo.
Levantou-se, atirou o roupão para uma cadeira e dirigiu-se até à casa de banho. Mel ouviu na sala o som da água a correr.
— Vamos — afirmou Lud poucos minutos depois.
No restaurante, ficou sentado no lugar que Dean reservara à sua frente. Mastigava e cuspia as várias opções de terminar o sétimo capítulo, gatafunhando qualquer ideia nova nos dois blocos que sempre guardava em diferentes bolsos. O pensamento era mais veloz do que a escrita e convinha copiar de um para o outro as frases completas e novamente para o anterior não fosse perder um deles. Mel empurrava a perna de Lud com o joelho, obtendo aqui e ali um içar de sobrancelhas. A insistência de Mel fê-lo perdurar na cadeira até ao ritual do bolo e dos parabéns.
— Vamos indo.
— Já vamos, Lud. Não comeces a pressionar-me.
— Tenho de ir trabalhar.
— Deixa-me só acabar o uísque.
— Então, Lud, já te vais embora?!
— Tenho mesmo de ir, acredita.
— Daqui a umas horas, estou acordado, pá... Tu podes ficar a dormir até tarde. São os meus trinta e nove, pá. Daqui prà frente, é tudo enta. Este é o ano da antecipação dos enta. É o ano mais terrível... Estava cheio de saudades tuas, pá. Ou «de ti», como me costumas corrigir. Aguenta mais um bocado.
— Hoje, não dá mesmo, Dean.
— Mas o que é que se passa com ele? — Dean virara os ombros para a sua amiga.
Mel olhou para Lud.
— Ele anda muito cansado.
Dean encaminhou-os até à porta e, segurando-a, perguntou em voz baixa:
— Está tudo bem contigo, Lud?
— Está tudo bem. Podes acreditar em mim — disse, exibindo o segundo sorriso da noite.
Dean pareceu visivelmente recomposto.
No caminho para casa, Mel disparava críticas.
— Tu nem te despediste da Sylvie e do Tolly.
— Esqueci-me.
— Não te esqueças é de que temos o casamento deles daqui a quinze dias.
— Não vou.
— Tu ‘tás maluco? Mas tu ‘tás maluco? Não vais como?
— Invento uma doença.
Mel resmoneou no caminho até casa, gritando-lhe num sinal vermelho.

                                                              II

Mel chegou do trabalho pouco depois do crepúsculo.
— Então, correu bem o dia?
— Então... — Lud sublinhava uma palavra repetida e escrevia na margem: «Sinónimo.»
— Saíste hoje?
— Saí.
— Não me mintas. Olha pra mim, bolas! Larga a merda da folha! Já só te peço que não me mintas. Já bastam as mentiras aos teus amigos. Tens a chave no mesmo sítio. Tu já não vais escrever pra cafés?
— Há cada vez mais ruído nos cafés.
— Há cada vez mais ruído é na tua cabeça. Passaste o dia todo com o telefone desligado. Quantas vezes é que…
— O Dean está sempre a ligar…
Mel abanou a cabeça até a testa pousar na palma da sua mão. Libertou-se dos brincos e dos sapatos e sumiu-se no quarto. O escritor continuou a lutar contra os adjectivos e os advérbios de modo.
Estava o escritor a raspar a banha de uma longa digressão lateral quando uma resma de cartas sobrevoou a mesa, espalhando-se pelo seu colo. Semiergueu o rosto com os lábios atónitos.
— Vais abrir estas cartas todas, agora, à minha frente.
— Dá-me só...
— Não dou nada!!! Abre isso agora. Há semanas que isto está aqui. ´Tou farta de ser sempre eu a tratar das coisas da casa. Se dependesse de ti, havia lixo e pó até ao tecto. Tens não sei quantas cartas com o teu nome. ´Tás todos os dias a adiar.
Mel sentou-se, cruzou as pernas, a direita lutando contra o ar num vaivém ininterrupto.
— Lud, estou à espera… Ainda não percebeste?
A mão de Lud alcançou um ponto final e o seu corpo levantou-se com certa lentidão. Pareceu hesitar uma eternidade no acto de abrir o primeiro sobrescrito.
— O que é que queres jantar?
— Já comi uma sandes há bocado.
— Agora, é todos os dias isto, não é?
— Não — deixou escapar num tom abaixo do sussurro.
— Vamos ver um filme hoje?
— Hoje, é impossível — asseverou, enquanto a sua mão operava freneticamente almejando voltar ao seu elemento natural.
Mel soltou um som entre um riso e um suspiro. Pegou no telefone e ligou a várias pessoas.
— Vou tomar um café.
— O.K.
— O.K. Isto é demais pra mim — disse, atirando com a porta.

                                                              III

A obstinação de Dean e Mel conseguiu arrancar Lud da mesa da sala no dia do casamento de Sylvie e Tolly.
Ainda que se ativesse ao livro a todo o instante, conseguia falar às pessoas como intuía que deveria falar-lhes e dispor de uma linguagem corporal que excedia a mera cortesia.
— Se não fosses escritor, serias um óptimo actor — fracassou Mel na tentativa de o fazer sorrir. — Mas conheço esse olhar… A mim, não me iludes. Não consegues fazer uma pausa? Pensa assim: estou a descansar a mente para ela depois voltar reforçada para a guerra. Sim? Quando Lud deparou com a lista dos nomes e das respectivas mesas, puxou dos blocos de notas. Ainda não estava seguro quanto ao nome da personagem Nick Drake.
— Procura a sua mesa?
— Não, não. Obrigado.
Após assentar todos os nomes, procurou a sua mesa, onde um lugar solitário o aguardava.
— Lud, hoje quero ver-te dançar — disse-lhe Dean.
— Não queria ir-me embora muito tarde.
— Ainda agora chegaste… Tem calma, homem.
— Só se embebedares o teu amigo hoje — atirou Mel com descrença no rosto e seriedade na voz.
A mesa onde estava, as pessoas não pessoas, vultos apenas, o frenesim em seu redor… Tudo se desfocava, tudo emudecia, todos eram feitos de papelão e iam encolhendo ao longe.
A fachada da casa. Ainda não a vira. «Bonita», «fresca», «imponente». Grandes chapéus. Clichés. Lixo. Precisava de a imaginar com o pormenor e a familiaridade dos seios de Mel e concomitantemente com a frescura de outros. Uma miríade de casas não lhe saía da cabeça. A casa teria de lhe aparecer — de emergir. Começava a ter dúvidas quanto a decisões que arrumara. Seria mesmo à beira-mar? Teria jardim? O quarto branco despido… havia qualquer coisa de irrealidade nele. Nada daquilo era sólido.
Foi à casa de banho, sentou-se na sanita e escreveu. Permaneceu nesse sossego durante bastante tempo.
Voltou para junto dos comensais, mas pouco depois o fervilhar voltou.
— Estou bastante maldisposto. Não me estou a sentir nada bem — a sua mão percorria a barriga. Levantou-se e recolheu-se na casa de banho até se libertar de toda a tralha no papel.
Quando regressou à mesa, sentiu fraqueza e comeu o prato. Ainda insaciado, lançou a mão direita aos pequenos pratos no centro da mesa. Uma frase despertou-o mantendo a mão suspensa.
— Desculpe, importa-se de repetir o que disse?
— Eu estava a dizer que...
Não, não. Quero a última frase.
— Não pode tentar lembrar-se da última frase? Ninguém ouviu?
Mel olhava para baixo, como se absorvesse a vergonha que passeava ociosamente no ar e que Lud não agarrava.
Poucos minutos após o início das danças, Lud contagiava Mel com o seu nervosismo.
— Vamos, vamos. Não me vais estar a infernizar a cabeça o tempo todo. Já sei que não vale a pena tentar que consideres o meu interesse.
Quando se despedia, Lud sentiu uma mão no seu ombro.
— Lud, preciso mesmo de falar contigo. Mesmo! Não te roubo mais de cinco minutos.
Dean levou o amigo até ao jardim lá fora, onde a Lua se reflectia na piscina e lhes banhava o caminho de um leite lustral.
— Lud, eu quero que saibas. Sei que o sabes… mas quero dizer-to na mesma. Tu és das pessoas por quem mais gosto neste mundo
— Dean fez uma pausa.
— O que é que se passa contigo?
— Não se passa nada. Só penso em escrever.
— Lud... não faças de mim parvo. Não pode ser só isso.
— Só? Ah, só.
— Tu andas desligado de tudo e de todos.
— Ffffffff... — expirou. — Dean, estou-me nas tintas para tudo o que não seja a minha escrita. Eu sei que dói a um amigo ouvir isto, mas estou a ser o mais sincero possível contigo. Mesmo as emoções dos outros… interessam-me… enquanto um corpo num laboratório.
— Tu tens de reflectir sobre isso. Não se pode viver sem afectos. Não podes viver na sede da perfeição. Porque não existe, porque te sentirás sempre frustrado e impotente e porque mesmo que a atingisses te sentarias num vácuo. Bem, sinto-me contaminado de literatura a falar — riu-se por um segundo.
— Tudo isso é certo e sabido, mas isto é um monstro indomável. Tenho de despejar o livro... Caminho em linha recta. É a única forma. Nada, nada, nada me pode afastar do livro. Além desta necessidade irreprimível, não há nada. Ou o que há nunca chegarei a descobrir. O rosto de estátua de Dean levou Lud a acrescentar:
— Neste momento, pelo menos…

                                                              IV

Às três horas da manhã, Lud despertou de um sonho do qual pretendia resgatar uma frase. Não apenas uma frase — uma das maiores verdades da vida. Tacteou no escuro, empurrou o bloco para o chão, acendeu o candeeiro e sentou-se na borda da cama. Mel acordou.
Escreveu — só meias palavras, só meias letras, naquela forma febrilmente maquinal que aperfeiçoara, no alfabeto só seu que desenvolvera. A ideia fugia e a mão acelerava, acelerava, lutando por não deixar escapar um átomo. Parou e leu. Não era aquilo — as unhas não arranhavam sequer o segredo incandescente. Esperou, pensou, escreveu, mas a ideia voara da janela e perdera-se na imensidão da noite — infinitamente mais longe e mais longe…
Rendido à perda, sentiu Mel agarrá-lo e puxá-lo. Lud correspondeu, havia muito que não correspondia, e aqueles seios, nádegas e triângulo relvoso pareciam revestidos de novidade e viço. Mel fez Lud entrar em si. Lud ainda sentia a perda, ainda sentia os pedregulhos no livro, mas a carne empolgava-se e o espírito consolava-se com a ideia de os gemidos de Mel lhe expurgarem parte da displicência dos últimos tempos… até que, subitamente, um clarão no seu cérebro derrubou Mel.
Apanhou o bloco de notas e garabulhou a ideia do sonho. Mel permaneceu nua na cama, estática e aturdida ante o remoinho. Acendeu um cigarro trémulo e foi procurar uns comprimidos antigos numa caixa.

                                                              V

Um ataque de ansiedade da mãe de Mel obrigou Lud a sair de casa. No regresso, enquanto Mel falava ao telefone com uma amiga, o escritor compunha frases com o cérebro.
— Cuidaaado!!! Não puxes do bloco numa curva! Que merda! Já te disse centenas de vezes! Diz-me, que eu escrevo. Tu és a única pessoa do mundo que não consegue evoluir em nada. Olha o ga...
Lud travou, enquanto Mel saía da viatura e corria pela noite.
— Luuud! Luud! Lud!
Um animal ensanguentado e desfeito no asfalto.
Lud aproximou-se e Mel bateu-lhe ininterruptamente no peito, praguejando e chorando.
— Não há nada a fazer.
Mel deu uma bofetada em Lud, que não esboçou reacção, e recebeu uma segunda.
— Não há nada a fazer?! Tu… — os soluços juntavam-se às lágrimas. — Tu sempre adoraste animais. Tu transformaste-te num monstro. Eu vivo com um monstro, com um cadáver… Porque é que eu continuo a fingir que nós temos algo?
No dia seguinte, quando chegou a casa, anunciou:
— Temos de ter uma conversa, Lud.
Obnubilado, lutando com uma frase que havia meses procurava consertar e que não poderia ser aniquilada, Lud conseguiu identificar pela fácies de Mel que o fim estaria próximo.
Sentados lado a lado no sofá, começou por escutar:
— Eu preciso de um tempo…
Ouvia com atenção, mas só deixava cair monossílabos. Arredara-se da vida por tanto tempo, que era difícil voltar a ela sem um sentimento de estranheza e um tropel de emoções confusas.
— E deixa-me que te diga uma coisa, Lud. Para seres escritor, tens de sentir as coisas, tens de te deixar ser tocado por elas. Não eras tu quem criticava «a escrita desvivenciada»?
Mas a vida — como explicar-lhe? —, a vida já só lhe interessava enquanto objecto observável e manejável — enquanto mera plasticina para a escrita. A vida, ela própria, deixara de ser um fim em si mesmo.
— Eu já conheci pessoas para quatro encarnações e tu sabe-lo. Já observei muito externamente, já observei muito internamente. Sabes tão bem disso. Agora, tenho de acabar o livro.
— Por mais quanto tempo?
— O livro é que sabe. Parece conversa de um louco? Não é. É assim, Mel. Talvez o ofício de escrever tenha que ver com demência. Talvez. Sei que tenho de viver neste mosteiro ou neste hospício, povoado de pessoas e lugares que não existem, até o acabar. Tens de me deixar escutar estas vozes até ao fim. Dá-me uma oportunidade, Mel. Quando acabar este livro, vamos passear… Damos um pulo ao estrangeiro, prometo-te.
— Eu preciso de me afastar… Tu estás doente, estás a fazer-me mal e eu não consigo, eu não consigo… — as lágrimas impediam-na de ver o semblante mais atento de Lud dos últimos anos. — E não voltes a usar frases minhas em livros. Não voltes a usar momentos da minha infelicidade. Peço-te. Tu afastaste pessoas nossas amigas por causa da tua promiscuidade intelectual, emocional, o que quer que seja. Tu devassaste pessoas, vampirizaste desgraças, foste oportunista com a intimidade alheia. O escritor matou o homem que eu conheci. Em poucos dias, Mel emalou tudo e partiu.

                                                              VI

As paredes da casa assumiam um rosto opressor e uma qualquer poeira insalubre cirandava pela sala. O escritor tinha dificuldade de concentração e, por entre os interstícios do livro, Lud via-se obrigado a reflectir. Talvez Mel, no seu cliché ridiculamente banal, tivesse razão. Não bastava contemplar a vida — era preciso vivê-la. E não podia dizer que suspendia a vida. Que a interrompia. O pousio emocional não permitia nenhuma flor literária. A reminiscência da emoção não era a emoção. Precisava de furacões, de demónios, de oceanos revoltos, de facas cravadas — a literatura tinha de sangrar vida.
Mas já tenho este livro tão bem definido… é só esperar a escuta das vozes, os murmúrios vão aclarando-se, sinto e sei, e quando sinto e sei isto nunca falha. Não preciso de recolher nada que as modifique. Devo afastar-me de tudo o que as possa abafar ou adulterar.

A ausência de Mel pesou-lhe durante uns dias e, a cada semana, a angústia cavava mais fundo. Numa noite em que ficou sem luz por se ter esquecido de pagar as contas, não conseguiu escrever nem rever uma linha e percorreu a casa em todos os sentidos, andando mais metros do que em dois meses do livro.
Misturada com a penumbra, misturada com a solidão, a personagem flácida de Nick Drake confrontava-o. Parecia-lhe uma fusão de duas pessoas que conhecia. Não era Nick quem comandava as suas atitudes — era Lud. Nick não possuía tão-pouco um ideolecto. Telefonou a Dean e saiu de casa.
— Finalmente, qualquer coisa que te perturba! A Mel vai voltar, acredita em mim. Mas que isto te sirva de lição para lhe dares mais atenção daqui prà frente.
— Não sei, Dean, não sei. Sacrifico tudo à literatura.
— Então, aproveita esta experiência para a escrita.
Uma luta!
Dean continuava a falar, mas Lud ouvia apenas a melodia do livro.

                                                              VII

O muro que se erguera no livro ia esboroando-se, os nós desatavam-se. As palavras flanavam sobre a mesa e poisavam na folha. Um desbaste, um polimento, voltar à folha uns dias mais tarde, a destilação, e eis um parágrafo perfeito. É certo que alguns parágrafos perfeitos tinham de ser sacrificados à articulação do conjunto, mas isso ficava para o processo final das setecentas revisões. A solidão não era mais solidão. Era quietude. Não sabia se havia relação, mas isso coincidira com a saída de Mel, que gradualmente ia abençoando.
Certo era que desde que a escrita corria veloz e ligeira, a espera de um sinal de Mel se atenuava.
Sempre quisera ser escritor e progressivamente renunciara a tudo o que lhe servisse de obstáculo. Ser artífice do livro, ser ouvido do livro. Entre quintiliões de mãos, a mão certa para cada livro.
Trabalhar com barro, trabalhar com flores. Lutar contra o amontoado de lugares-comuns que amarrava o pensamento. Dizer algo novo quando já tudo fora dito. Reduzir o hiato entre o intransmissível da mente e as palavras no papel. Nada procurava senão a perfeição. Não poderia ter escolhido um ofício mais tenebroso — não, ele não o escolhera.
O escritor devia procurar uma força centrípeta no centro do papel — uma força colossal que sugasse tudo, todo o universo, todas as ruas, todos os lares, todos os seres viventes, todos os mortos e todo o porvir. Até que o livro reflectisse cada rosto que se aproximasse.
Uma luta.
Mel começou a enviar sinais quando Lud deixou de enviar sinais. Trilhava o caminho solipsista do livro e olhava a lua cheia à noite. Era tudo.
Os seus dedos começavam a tocar nas palavras que estavam por trás do subsolo do subsolo. O próprio Nick Drake parecia finalmente assumir a sua identidade e os seus caprichos.
Uma luta em que ambos perdem. A derrota como um valor superior ao da vitória.
Regressou à incomunicabilidade. À noite, lia as mensagens de Mel com uma saudadezinha que não queria alimentar. Andava a ler tudo o que encontrava sobre lutas de rua e desportos de luta. Escreveu pela noite fora, acordando com o bloco no peito e o lápis afiado encostado à anca. O sono encarregara-se da tapeçaria das ideias fragmentárias. Era uma luta com ferocidade e sangue. Recordava algumas lutas em adolescente, mas nada que se assemelhasse àquela violência, à lonjura daquela luta em que ambos perdiam.
De dia para dia, crescia dentro de si uma felicidade, o vislumbre da cúspide de uma felicidade que poucos seres humanos teriam alcançado. Descrever o mais perfeito episódio de uma luta. Páginas e páginas e páginas que rasurariam tudo o que estava por escrever. Tinha a certeza de que nunca ninguém escrevera ou escreveria algo comensurável àquela luta.

                                                            VIII

Numa noite, saiu de casa. Percorreu bairros de lata, parando nos sítios onde farejava o perigo.
Estranho. Tornei-me numa criatura sem medo.
A acalmia da noite desinquietou-o.
O topo do morro.
Caminhou para lá enquanto se ia lembrando das histórias acerca do local «onde a polícia não entrava». Lera, em tempos, a história do homicídio de um turista no topo do morro por um grupo de jovens. Ficara-lhe gravado visualmente. O pormenor da pilhagem dos adereços e da roupa do defunto pelos sujeitos do bairro que iam passando.
Antes de trepar a vegetação moribunda, olhou em volta. Cavou um buraco na terra, envolveu os blocos de notas num saco de plástico e enterrou os escritos.
Subiu o morro sobreexcitado como se ali fosse buscar as páginas secretas da longa luta. Num instante, estava lá em cima, contemplando uma Lua líquida e mágica — aquela Lua era uma mulher. Andou por todos os lados, mas as barracas pareciam submersas em tranquilidade. Avistou algumas, poucas pessoas — ninguém lhe disse palavra. Seria o seu aspecto das últimas semanas confundível com o dos autóctones? Seria a ausência de medo um círculo de fogo à sua volta? Seria a criminalidade propagandeada do espaço uma mistificação?
Tenho de ir mais longe.
Três indivíduos conversavam. Passou por eles. Nada. Deveria provocá-los?
Voltou atrás, passou novamente por eles, dando um toque a um indivíduo de boné, brincos, anéis e tatuagens que estava encostado a uma parede por um braço, desequilibrando-o.
— Desculpa — saiu-lhe automaticamente.
O sujeito ergueu-se e esticou o polegar.
— ´Tá-se.
Não devia era ter pedido desculpa. Mas, de qualquer forma, eu tenho é de provocar um gajo isolado. O livro pede uma luta a dois, corpo-a-corpo.
Deu mais umas voltas pelo bairro em busca de sarilhos. O livro vociferava-lhe e diminuía-lhe a protecção salutar do medo. Agnóstico, acreditava que neste caso forças cósmicas se incumbiam de proteger o longo trecho que tornaria toda a literatura numa farsa.
Ao chegar, escreveu tudo o que recolhera. A Lua como uma mulher, a supressão do medo. Duas ou três gotas — o sumo da noite. Decerto, essas gotas se volatilizariam com o paladar exigente da revisão.
Para rasgar.
Lá fora, o dia nascia e a sua cabeça pendeu para a almofada.

                                                            IX

Comprou e leu livros de artes marciais, de pugilismo, biografias de lutadores com descrições vívidas, viu vídeos de apostas do submundo das lutas. Acreditava que lhe faltava o essencial — a autoridade do conhecimento da experiência.
Mas basta imaginar. Já o fiz outrora melhor do que se o tivesse vivido.
As personagens da luta procuravam dissuadi-lo a todo o custo. «Tens de experimentar.»
Quando decidiu sair de casa, a campainha tocou. Era Mel quem estava lá em baixo. Apagou as luzes da casa, verificou que o telefone estava desligado e esperou até que a silhueta se afastasse da porta do prédio. Pela cortina, viu-a entrar no automóvel e desaparecer. Caminhou até ao morro. Os sons humanos que o povoavam não o largavam. Havia uma luta a travar.
É hoje. É hoje. Nem que tenha de incendiar um lar.
Havia movimento no bairro. Lud sorriu.
É mesmo hoje.
Passeou-se por todos os grupos que encontrava — nenhuma palavra, nenhum gesto, nenhum olhar.
Parece que bebi a poção da invisibilidade.
Em certa altura, um ser de garrafa na mão capturou o seu olhar. Estudou-o. Aproximou-se.
— Boooaa noiite… Onde anda a minha mulher?
Lud roubou-lhe o cigarro da mão e utilizando o dedo médio como alavanca atirou-lho à cara.
— Qué que tu queres? Vai chateaar outro…
— Chiu — Lud encostou o indicador à boca e a testa à do indivíduo, que se afastava dizendo que andava tudo doido.
Furou imediatamente por entre um grupo pisando o pé de um.
Vou mas é procurar um sozinho.
Um jovem discutindo ao telefone, negando infidelidade e jurando amor eterno, fez Lud deter-se.
Estacou de braços cruzados com o olhar imóvel no rapaz. Em meio de uma gritaria, o tipo sussurrou qualquer coisa e tapou o telefone.
— Temos repórter?
— O que é queres, palhacinho?
— Amor, desculpa, eu já te ligo…
Lud escarrou na sua direcção e fitou-o com um sorriso de sarcasmo.
— Filho de puta.
O jovem limpou a cara com a mão e correu contra Lud, que já tinha o punho direito à espera. A velocidade do opositor não lhe deu espaço para o murro, mas conseguiu prender-lhe a cabeça com o braço direito por momentos e baixá-la até à sua anca. Uma mão ágil apertou-lhe os testículos como se os esmagasse. Dentou-lhe a orelha esquerda e ambos se largaram por instantes, sendo a respiração de Lud mais acelerada. Utilizou toda a força que possuía para o empurrar para longe. Antecipando o pontapé, fintou-o movendo-se para a direita. Deu uma cotovelada com o braço esquerdo na cabeça que ainda coordenava os movimentos do equilíbrio. Puxou-o pela camisola e atirou-o para baixo. No chão, prendeu-lhe os braços com os joelhos desferindo murros em catadupa. O telefone no bolso tocava e a vozearia atrás de si parecia cada vez mais próxima. Desceu o morro a correr.
Estou exausto.
Enquanto escavava o buraco onde tinha os blocos de notas, ouvia passos e brados.
Estou longe do carro. Não há vivalma aqui.
Ia gritar por socorro, mas o instinto disse-lhe que só poderia piorar a situação. Procurou com os olhos um ponto de abrigo. Uma turma descia pelo morro. Uma voz emergia sobre todas as outras:
— Deixem-no pra mim! Deixem-me tratar do assunto! Vão-se embora!
Tudo se organiza. Eu sabia. O néctar vem aí.
Lud viu que o ensanguentado segurava uma arma na mão. Correu para o ponto de abrigo. O rapaz corria atrás de si, o sangue a pingar-lhe da cara e a deixar o seu rasto na estrada. Lud fez esquina atrás de esquina e despistou-o. Parou — o corpo encostado a uma parede de tijolo. As personagens vinham de novo falar consigo. «Na luta, ambos perdemos.» Lud tentou exilá-las, mas as personagens zangavam-se com energia redobrada: «É o sentimento de perda que tens de experimentar. Não tentes enganar-te a ti próprio. Quase-morte é a parte mais importante.»
Tenho de passar por uma experiência de quase-morte? Eu sei sobre o assunto. A recapitulação da vida, o túnel escuro com uma luz branca ao fundo, o desapego extático, a paz absoluta, flutuar acima do corpo.
«Deixa-te de tretas, tens de sentir o que é uma experiência de quase-morte.»
Não, não, isso apareceu agora, isso é uma fantasia. E não posso garantir que consiga isso. É a luta. E, sim, o sentimento de perda. Mas se eu morro, vocês morrem também, porra.
«Tens de sentir o que é uma experiência de quase-morte. Sabes disso.»
Não, não tenho. É uma luta longa. Isso, eu sei.
Passinhos finíssimos deixaram Lud de sobreaviso. Saiu de trás do contentor e saltou-lhe pelas costas, fazendo-o cair. Recebeu várias cabeçadas dadas de costas, a nuca embatendo-lhe contra a boca e o queixo, o suficiente para o corpo se revirar e as mãos irem ao local da arma, até que Lud, que nunca sentira a morte tão perto, lhe agarrou um dedo com ambas as mãos, torcendo-o até provavelmente o partir a avaliar pela berraria. Pegou na arma, afastou-se uns passos e lançou-a o mais longe que conseguiu. «Na luta, nós perdemos.» O jovem correu contra Lud da mesma forma que da primeira vez e levou com a direita entre o queixo e a maçã do rosto. Quando ia dar o segundo soco, levou um pontapé lateral na perna e uma cabeçada que lhe deu cabo do nariz. Os sentidos fugiam-lhe. Enquanto recebia pontapés e murros, um dedo de Lud conseguiu espetar-se breve e intensamente num olho da fera. Zonzo e debilitado, agarrou a cabeça do rapaz com o braço como no morro. Os nós de três dedos, principalmente o do meio, abriram a mão de Lud que largou a cabeça. «Na luta, nós perdemos.» As mãos subitamente apertadas em torno do seu pescoço devolveram-lhe a carapaça animal que dava joelhadas inconsequentes. Sem ar, levantou os dois braços e deu fortes socos laterais no outro pescoço até ter a garganta livre. Atirou um pontapé certeiro aos testículos. Agarrou a cabeça do rapaz e fê-la baixar enquanto subia o joelho esquerdo num forte embate. Pôs-se em cima do corpo estendido com o indicador pressionando o ponto vital em baixo do pomo-de-adão.
— Podia matar-te agora. Mas vou parar. Estou muito mais danificado do que tu. Ganhaste.
Levantou-se sempre com os olhos no rapaz, que recuava o suficiente enquanto Lud caminhava de costas recuando também. Quando viu que dedos procuravam algo, Lud correu e empurrou-o. As pernas abertas que procuravam não cair esqueceram-se do dedo frágil que Lud magoou novamente dando-lhe de seguida uma cabeçada no nariz que o tombou. Ia imediatamente para o seu carro.
A Fénix corria atrás de si e Lud sentiu que o seu passo já não lhe conseguia escapar. «Na luta, nós perdemos.»
Ele vai ter de ganhar, sim. Já não há arma e isto foi tão pouco.
Os seus olhos divisaram a pistola enquanto a distância entre ambos diminuía. Correu mais do que as suas reservas permitiam, agarrou a arma e mandou-o ajoelhar.
Tenho de quebrar o grande interdito. Vou matá-lo. Isto, sim, será a vitória do escritor sobre a lei maior. Isto, sim, dará para outro livro. Isto é que é.
Sentiu os olhos demasiado humanos do ajoelhado. Disparou todos os tiros para o ar.
— Acabou. Podia ter-te matado. Acabou. O.K.?
— Sim.
Estendeu a mão direita para levantar o genuflectido, segurou a sua mão direita e imediatamente sentiu uma mão pressionando-lhe o pescoço até ao sufoco. Acertou-lhe com o cabo da arma na cabeça. Vou chamar uma ambulância. Bem, não foi com tanta força assim… «Na luta, nós perdemos.» Os olhos do corpo deitado subitamente abriram-se, como se estivessem à espera, e Lud abanou a cabeça. Atirou a arma para o lixo. Instintivamente defendeu-se dos murros com os braços. «Na luta, nós perdemos.» Quando um pontapé lhe acertou nos testículos, curvou-se e sentiu um cotovelo cair verticalmente na sua cabeça como chumbo. Virou-se rapidamente no chão para não estar de costas e o rapaz rapidamente se sentou em cima de si. Conseguiu levantar as pernas de modo que lhe prendesse a cabeça e a levasse até ao chão. Com os braços, segurava-lhe as pernas.
— Vamos parar, sim?, eu liberto-te e chamo uma ambulância para nós. Se quiseres, lutamos noutro dia. Dou-te os meus documentos, tudo. Dou-te a minha morada. Por hoje, acabou.
Desfez a chave de braços e pernas e passou-lhe os documentos.
«Na luta, nós perdemos.»
— Já me podes fazer a folha quando quiseres…
Ligou à ambulância.
«Na luta, nós perdemos.» «Na luta, nós perdemos.»
— A tua dama encornou-te, sabias?
Com um gesto, a camisa de Lud foi rasgada, houve troca de empurrões e Lud procurou o dedo frágil. Erro seu. A outra mão estoirou-lhe o lábio com uma soqueira subitamente aparecida e um pontapé na cara deixou-o prostrado com a imensidão do céu.
Uma Lua tingida de sangue no final da luta, uma Lua tingida de sangue no final da luta. Não, já devo ter lido isto centenas de vezes.
— Ela foi com… Deixa-me só dizer-te.
— Diz.
— Com o Dennis.
Uma ajuda vinda de Cima, lembrar-me deste nome que ouvi no morro… Que delícia…
— Ah, ah, ah… O velhadas?
— Ele forçou-a… Eu queria contar-te isso…
— Quem é você, Mano?
O som da ambulância fazia ouvir-se.
— Na quarta-feira passada, entre as 15 e as 18, pensa lá bem… Ela não estava contigo. Recorda-te bem da semana passada. O Dennis esperou-a, posso levar-te à rua se quiseres, apalpou-a toda e disse que a matava se ela abrisse o bico. O gajo lida com traficantes de droga e faz apostas de rua. Ameaçou-a de morte se te contasse. Posso dizer-te o que ele fez? Aquele velho asqueroso.
— E tu puseste-te a olhar pra mim a rir disso, Mano? — o jovem procurava algo no interior de um bolso esconso. A ambulância chegava à rua.
— Conto-te no caminho para o hospital.
— Conta já.
«Na luta, nós perdemos.»
— Ela gostou de levar com o velhadas porque sabe que tu tens a picha mole.
Sentiu uma faca entrar bem fundo dentro de si. Tacteou o bloco dentro das cuecas e adormeceu perenemente.




LUÍS BENTO


PENSO, LOGO EXÍLIO

A tia costumava dizer que ele era assim, meio avariado, desde pequenino, que trazia lá dentro algum botão escangalhado. E dizia-o com ar blasée enquanto distraía a vista cansada nas montras da Joframa, na rua dos Fanqueiros, pejada de manequins amarelos e mortiços, aqui e ali esfolados e com mossas na tinta. Era o tempo em que o universo era feito de legos, livros e coisas boas e em que todos queriam ser alguma coisa: polícia, bombeiro ou astronauta. Ele não queria ser nada. Imaginava-se apenas uma espécie de Vasco da Gama ou Sandokan a descobrir o remédio para tratar a doença da mãe, o absurdo estéril dos achaques e maleitas que a faziam sofrer de fraqueza e vomitar entre a casa de banho e o quarto de janelas fechadas, no escuro, a debitar pedidos e queixumes. Doía a cabeça, os rins, as costas, a barriga. É dos nervos dizia o médico É dor de alma diziam as vizinhas e ele ficava horas, parado, a olhar para o estuque encardido onde um fiozinho de humidade deixara marcas desde o interruptor até ao rodapé, à procura, ali, de algum sinal da existência de Deus. A tia viera da terra para Lisboa dar uma ajudinha, achava que ele não tinha tino, que lho levara alguma personagem dos livros que lia em demasia, quase tão mau como apanhar muito sol naquela moleirinha cheia de sonhos, mas ele sabia que ela era afiambrada à socapa pelo Arnaldo do terceiro andar, chauffeur de carro de praça, Mercedes-Benz 200 D, arraçado de carro de combate, polido, lustroso, porta-estandarte do belenenses com imagem fluorescente da nossa senhora no tablier. Era nesses momentos que ele aproveitava para ir à caixinha, por trás do jarrão chinês da dinastia Ming que a mãe comprara, quando ainda tinha disposição e sorriso, ao aldrabão do Mota da casa de móveis em segunda mão que afiançava ser genuíno, que de qualidade e velharias percebia ele e tirar umas moedas para ir à mercearia comprar pastilhas e recordar com a Tininha as férias do verão anterior, em Santo André, com o avô a fazer vinho americano às escondidas porque era proibido desde o tempo do Salazar, a barrar manteiga nos dois lados das bolachas Maria porque era guloso e porque as lambia até derreter por não ter dentes. O amor com interrupções, as brincadeiras, as asneiras, muitas, mais que pedras no caminho de Pessoa. Esse Pessoa a tornar-se calhau imenso, estigma melancólico a atravessar-se com pontualidade arreliadora na alma lusa. As corridas para a loja com cheiro a gasól, do motor de tirar água do poço, porque ela tinha medo dos javalis, cobras e ratos do campo. Trocavam carícias no meio das sacas de batatas e a avó a espantá-los com as mãos ásperas, para ajudarem a apanhar os marmelos que começavam a cair de maduros e faziam estrondo ao esborrachar-se nos torrões duros de terra seca, a avó a gritar porque se esventravam e ficavam sem serventia. O mesmo som que ouviria mais tarde, quando aquele alferes miliciano que cumprira tropa no Uíge e que fora da Securitas e depois entrara para um banco e tinha uma mulher hospedeira, muito bonita e, por sinal, muito simpáticos e se mandou da varanda descascada de um sétimo andar em Odivelas e ele a ouvir a avó gritar que eles se esventravam e ficavam sem serventia e a perceber que a morte tinha cheiro e que no fim ficava um silêncio absoluto, vereda estreita entre o pensamento e a fé, espécie de exílio onde o corpo resgatava a memória e o amor, que se tornava mais forte não pelo espaço ocupado no coração, mas pelo vazio que ficava quando partia…