Introdução

Retalhos da vida de um fotógrafo amador

(amador: aquele que ama)

TEXTO DE PEDRO FOYOS




O mais belo cartão-de-visita que recebi até hoje tinha inscrito sob o nome do ofertante:

Médico-cirurgião
dos Hospitais Civis de Lisboa

Fotógrafo Amador

Gratamente não faço segredo do nome: Dr. Jorge Silva Araújo, notável veterano da medicina portuguesa e, já se deixa ver, tão amante da arte fotográfica que lhe conferia a dignidade de figurar no cartão-de-visita, a par da insigne profissão. Quem considerasse despropositada (para não dizer outra coisa) a informação final, simplesmente mostraria grande ignorância sobre a salutar coexistência de uma atividade profissional e de uma outra assumida como reduto do prazer criativo. Sendo esta tão confortante, espiritualmente, como a primeira, por que não manter a equidade, a começar num singelo cartão-de-visita? Era uma corajosa declaração de amor: amador é aquele que ama. E o Dr. Silva Araújo não escondia o orgulho de ser autor de admiráveis imagens fotográficas (a sinonímia de "boa fotografia" passava então por expressões como "uma boa chapa" ou "um bom boneco", esta mais associada a um flagrante jornalístico). Tradição interessante naquele tempo era a dos médicos, em número apreciável, conciliarem o exercício da Medicina com o amadorismo fotográfico. Igualmente a de serem escritores, por vezes pintores, como se sabe. Vem à memória uma frase célebre de Abel Salazar: «O médico que só sabe de Medicina, nem de Medicina sabe.» Tive o ensejo de manter relações de grande amizade com alguns destes médicos-fotógrafos, como José Fontes, Manuel Abranches, Manuel Valente Alves, também escritor. Felizmente, esse culto continua a fazer caminho.

O CASO DO GRÃO MÁGICO QUE PERTENCIA À ESFERA "DO ESPECTRAL"

O nome e a obra do brioso médico-cirurgião Dr. Silva Araújo, que amava a fotografia como tantos outros talentosos amadores portugueses, dissiparam-se no implacável anonimato que nos sentencia a todos, a menos que alcancemos a fasquia da genialidade, e mesmo assim... O caso do Dr. Silva Araújo reveste-se de especial injustiça porque foi um pioneiro mundial na área da pesquisa laboratorial. Entre outros êxitos merece realce a obtenção da grande ampliação praticamente sem "grão", ou seja, era possível ampliar uma imagem para qualquer tamanho sem nenhuma espécie de "grão" visível. Poderosas produtoras fotográficas, sobretudo a Leitz, cobiçaram-lhe os negativos, mas o médico português apenas autorizou a realização de várias exposições dos seus trabalhos na Alemanha. As fotografias do Dr. Silva Araújo pareciam mágicas. E não eram? Ampliava-se um negativo de 6 x 6 cm para meio metro de largura e o "grão" continuava a ser o de um postal. Até o aristocrático Trovisqueira (já muito idoso mas assíduo naquele claustro lisboeta nomeado Foto-Clube 6 x 6), que de hábito andava com uma lupa no bolsinho do casaco para perscrutar as obras dos neófitos, declarava com um trejeito de incompreensão que o engenho do Dr. Silva Araújo pertencia à esfera «do espectral». Ao amável Trovisqueira atribuía-se a máxima: «o grão causa estampidos visuais». Então, decerto por maldade, puríssima maldade, eu e outros heréticos membros da comunidade fotográfica desatámos a puxar o "grão", tão desalmadamente que, acaso estivesse aberta uma janela, o estampido (ou)via-se no prédio vizinho.
Por esse tempo, o Dr. Silva Araújo cessara o mandato como presidente da assembleia geral da Liga Portuguesa dos Deficientes Motores e um grupo de associados dirigiu-lhe o convite para assumir idêntico cargo na coletividade de que era sócio quase desde a fundação. Anuiu de imediato. Eu mal imaginaria que na década seguinte ele seria o meu ilustre antecessor naquele cargo no clube que entretanto adotara a denominação de Associação Portuguesa de Arte Fotográfica.

O SANTO MILAGREIRO DA RUA GARRETT

Estávamos no auge do concursismo fotográfico com expedições à Nazaré num ver se te avias à cata de velhinhas enrugadas, de preferência filadas em contrapicado para redobrar a estaleca com que elas puxavam, à força braçal, as redes de pesca. Alguns afortunados contavam depois com o apadrinhamento de António Paixão, santo milagreiro especializado em engenharia de aditivos visuais e regeneração de chapas fraquinhas. Milagrava nos laboratórios da Filmarte, na rua Garrett, em Lisboa, onde a presença da clientela seleta infundia por vezes uma certa ambiência de tertúlia fotográfica. Este bom amigo, uma das mais afáveis pessoas que conheci na vida, oferecia ao freguês um menu diversificado de nuvens em gradações infindas, do algodão alvo ao brumoso dramático, sendo esta a opção que tinha mais saída. Dizia com humor o Augusto Cabrita (outro inesquecível amigo) que os júris estrangeiros deveriam ter de Portugal a ideia de um país onde se vivia sob um céu perpetuamente nublado…
No seu estilo cândido, António Paixão regozijava-se ao saber que havia sido atribuído um importante prémio internacional a um trabalho restaurado ou aprimorado por ele ("impresso", nas suas palavras). Ah, está por levantar uma estátua a António Paixão! Talvez pudesse ser custeada por uma mão cheia de celebridades da arte fotográfica portuguesa…
Abracei-o comovidamente numa manhã invernosa de 1978. Do jornal recebera por telefone a dramática notícia: «Os laboratórios da Filmarte no Chiado arderam. Ardeu tudo!» Escrevi a reportagem com lágrimas nos olhos. Eu sabia que aquele espaço era a sua casa, uma alegria vivida dia a dia ao longo de trinta anos. Que visão alucinante me magoa a memória ao recordar António Paixão absorvido num esforço de identificação de máquinas e de objetos negros, incinerados e depois encharcados pela água dos bombeiros, que ia remexendo delicadamente, com a ponta dos dedos, como se os quisesse acariciar. O meu amigo não viveu muito mais tempo.

O DESPERTAR DOS ALIENÍGENAS

Uma visita aos anos sessenta e setenta não pode deixar de fazer escalas de cortesia em certos grupos estilísticos mais ou menos palacianos. A plebe fotográfica olhava-os com alguma incompreensão e perplexidade, como aconteceria se durante uma conversa consensual aparecesse alguém com a intenção abstrusa de desconversar. Desses grupos, um dos mais intelectualizados era o da fotografia integral (ou seja, o positivo deveria reproduzir imaculada e milimetricamente o negativo matricial). Subsistem alguns (muito poucos, dizem-me), mas já é raro divisá-los fora do palácio. Lembro-me que, como diretor de uma revista da especialidade, vi canceladas três assinaturas da publicação por causa de uma mordaz crónica do meu saudoso camarada João Aguiar (renomado escritor nos anos seguintes) intitulada "O Integralismo Lusitano".
Sempre reconheci franca e publicamente a excelência de alguns "integralistas", bons fotógrafos cuja intransigência, porém, os fazia cativos de um conceito restritivo que, penso, deve evitar espartilhos preconceituosos em qualquer género de arte. Não era o caso de um talentoso noviço com trinta anos, chamado Jorge Molder, que dava então as primeiras braçadas nas águas profundas da fotografia kertésziana. Acabara de realizar com êxito na galeria Quadrum uma interessantíssima exposição inspirada na intervenção de uma querida amiga, Ana Hatherly, e concedeu-me pouco depois a sua primeira grande entrevista ("grande", sem exagero: foram quatro páginas de jornal). O jovem Molder já possuía laboratório próprio, instalado num quartinho no sótão, porque «o grande prazer que a Fotografia oferece está em sermos nós – mal ou bem – a imprimir um estilo a todas as fases de execução.» Noutro passo, declarava: «Recuso-me a cortar uma fotografia minha». Exultaram os "integralistas", pois o meu entrevistado começava a evidenciar-se como o nec plus ultra da fotografia vanguardista. Todavia, Molder logo se demarcou daquela agremiação facciosa, explicitando que cada um deveria exprimir-se como melhor lhe aprouvesse. (Por estas novelas avaliar-se-á como era difícil ser prior numa freguesia assim). O País estava bem nutrido destas querelas inúteis, de uma tacanhez ancestral tão bem descrita por Fialho e Eça. Evitei-as nas publicações que dirigi. Não se tratava de eleger ou hierarquizar conceitos, géneros estilísticos contrapondo-os a outros. Tratava-se, antes, de acolher quantos cabem no universo da expressão fotográfica, incluindo "pecaminosamente" os que adotem essa expressão de uma forma parcelar.
Entretanto, na transição da década de setenta para a de oitenta, começara a visitar este planeta, oriundo de uma outra galáxia, mais um noviço que formava equipa com ele próprio sob a tutoria de um personal trainer de monta, o respeitado Robert Frank. Esse jovem, chamado — para os terrestres — Paulo Nozolino, possuía uma apuradíssima formação técnica e apresentava-se com um projeto inovador: «A única coisa que posso fotografar é a minha vida e esse é o meu ponto de partida e a minha realidade.» Assim tem sido, permanecendo em plena coerência nessa cápsula do tempo, embora eu desejasse que Nozolino saísse dela uma vez por outra, como na ocasião em que realizou uma reportagem extraordinária sobre os punkies londrinos. E outras. Mas não serei eu a revelar-lhe o cadastro da juventude.

ISTO SÓ PODIA ACABAR (OU COMEÇAR) NUMA "GUERRA DOS MUNDOS"

A cada ano decorrido no pós-25 de abril acentuava-se o movimento que afrontava o conservadorismo salonístico instalado sobretudo nas comunidades foto-associativas. Durou muito tempo a minha fama de idólatra dos deuses anarcas, incorrigível e relapso na obstinação em persuadir quantos passavam a vida a enviar cópias 30x40 para os cinco continentes (literalmente) de que a arte fotográfica não deveria fechar-se nesse círculo esmolante dos prémios, a ponto de os concorrentes selecionarem os seus trabalhos em função dos gostos dos gurus que constituíam os júris. A décadas de distância do advento da Internet, publicavam-se numerosíssimas revistas estrangeiras da especialidade que os amadores (e alguns profissionais, convém notar) assinavam com o intuito único de memorizar as técnicas e estilos gratos aos potenciais futuros membros de júris. Era uma jogatina com cartas viciadas que todos assumiam com espantosa naturalidade. Decidi passar da teoria à prática e ser o primeiro em Lisboa a dar o peito às balas logo após ser eleito presidente da Direção da Associação Portuguesa de Arte Fotográfica. Admito que me tenha excedido… A exposição individual que realizei no salão da própria sede associativa era ferozmente transgressora dos cânones vigentes desde a criação do mundo. Nenhuma das minhas fotografias cumpria as normas estatuídas para a aristocrática arte que os fundadores haviam designado por "photographica". Três dessas imagens, em especial, eram de estirpe ruim, hoje dir-se-ia terrorista, ou seja, visavam deixar tudo em cacos. "Guerra aberta", na belicosa expressão dos meus apoiantes no elenco diretivo. Permita-se-me a descrição: uma delas exibia áreas pintadas a pincel, amarelo-torrado para um Sol poente e azul clarinho para as nuvens na linha do horizonte. Outra apresentava a singularidade de dois objetos colados ao papel fotográfico (no caso, moinhos de vento, infantis, feitos de papel metalizado com cores vivíssimas; soprando, as velas dos moinhos volteavam felizes). Por fim, a tarte à la crème da exposição estava reservada para o final do percurso. Tempos antes obtivera um efeito visual interessante ao fotografar o rosto de um rapazito numa piscina. Ele encontrava-se completamente submerso quando deu conta de que estava a fotografá-lo. Embora tendo a cabeça dentro de água, abriu os olhos e sorriu; emergiu logo de seguida, mas o "momento decisivo" tinha-o alcançado dois segundos antes. Decidi reconstituir esse momento fazendo uma ampliação 40x50 da cabeça do jovem e desviei para a exposição a cuvete maior que tinha no meu laboratório, um pequeno tanque zincado. Enchi-a de água e submergi nela a fotografia da cabeça dentro de água (água fotográfica incorporada na água real). O resultado pareceu-me espetacular, até porque a imagem era visualizada de cima para baixo, pois a cuvete estava sobre uma banqueta, um palmo acima do soalho.
A inauguração, como era habitual nesse tempo, foi à noite. Boa afluência de visitantes. Via-me apoiado por um número confortável de consócios que de vez em quando me dirigiam sorrisos solidários e piscadelas de olho. Verificou-se, entretanto, que um grupo maioritário se demarcava, de semblantes encruados como certos legumes mal cozidos. Minutos depois começaram a ser audíveis considerações ruminadas esquivamente por essas criaturas recém-saídas dos seus jazigos. Vi-me a protagonizar uma espécie de Twilight Zone (eu era a personagem díspar). O grupo impugnador da minha irritativa arte foto-aquática entreolhava-se na expectativa de quem seria o primeiro a soltar os cães. Tal diligência coube enfim a um cartola muito pobre de espírito mas riquíssimo de medalhística fotográfica que, espiando a foto dentro de água, rumorejou o acórdão: «Com exposições a meterem água, esta casa vai mesmo ao fundo!»
Não foi. No entanto, em rigor histórico, ficou registo de que o Carmo e a Trindade, ali a dois passos, baloiçaram na noite lisboeta e por um triz não caíram com estrondo.

AVANÇAM AS TROPAS DO NORTE

O tradicional conservadorismo fotográfico de Lisboa não era corroborado pelas comunidades nortenhas (Braga e Porto) que dispunham de um associativismo vanguardista, alheado da fúria concursística e dos modelos estafados desde o meado do século, com assinaláveis exceções (notabilíssimos fotógrafos como Victor Palla, Costa Martins, Adelino Lyon de Castro, Fernando Lemos, Gérard Castello Lopes, Sena da Silva, Carlos Calvet e Ernesto de Sousa, um dos fundadores do Cinema Novo que guardou no coração, toda a vida, uma paixão primordial pela Fotografia). No Porto impôs-se sobretudo o Grupo IF (Ideia e Forma), dos mais enérgicos e inovadores de sempre, fazendo aparecer à luz do dia autores de excelência como Manuel de Sousa, João Paulo Sotto Mayor, Manuel Magalhães, José Marafona, José Carlos Príncipe, Luís Abrunhosa, mais tarde António Drummond. O Grupo granjeou notoriedade em pouco tempo e tornou-se um forte aliado da milícia progressista de Lisboa. Em junho de 1978 tornei pública uma saudação às tropas solidárias do Norte. Todavia, os destinatários dessa mensagem encontravam-se acantonados muito mais a sul, como se perceberá pelo fragmento seguinte: «IF é uma sigla rápida. As duas letras sintetizam, porém, um mundo imenso de arte e de imaginação. Também uma congénita insubmissão aos mestres-pilotos da barra. Porque IF não cumpre os mandamentos e recusa encerrar-se no cais de uma certa "photographia" portuguesa que agoniza amortalhada em regulamentos concursísticos, aspirando tão-só um lugar no pódio. IF não pactua, decididamente, com a rotina. IF demonstra que há um outro itinerário possível e percorre-o com uma vitalidade admirável».
Ajuizar-se-á a distância que separavam os contendores pelo facto de os artistas rejeitados em Lisboa serem bem acolhidos no Porto. A título de exemplo, entre outras situações: na capital centrista eram denegadas em absoluto as fotopinturas abstracionistas de Garizo do Carmo (de quem se recuperam três nesta Fototeca) e as montagens de Eduardo Nery (que eu próprio ousei fazer numa variante puramente laboratorial). A própria Imprensa mostrava-se inexorável. Escrevo este texto no dia em que foi conhecida a morte de Eduardo Nery e averbo para memória futura: quando editei em 1990 uma coletânea de obras de Nery foi escrito num semanário de Lisboa que o livro era um erro pegado, a começar pela capa, na qual figurava «impropriamente» o vocábulo "fotografia". Sim, reconheço que aconteceu no século passado. Mas só passaram vinte e poucos anos.

O HOMEM QUE ERA «UMA MISTURA DE GRANITO E DE ÁGUA»

Chegamos aos anos oitenta com Coimbra protagonizando uma saudável e dinâmica descentralização sem paralelo no País. É criado o Centro de Estudos Fotográficos da Associação Académica (CEF, mais tarde CAV – Centro de Artes Visuais), cuja atividade cedo sobrelevou o âmbito estudantil. No entanto, o acontecimento magno, com projeção internacional, viria a ser a organização anual (depois bienal) dos celebrados Encontros, com os seus seminários, conferências, workshops e sobretudo exposições consagradas aos mais importantes nomes da fotografia contemporânea. A grandiosidade do projeto excedia claramente a escala portuguesa e em certos aspetos quase ombreava com o mítico empreendimento similar na cidade francesa de Arles.
Fui a Coimbra em reportagem numa das edições e encontrei Albano Silva Pereira de mãos na cabeça: a poucos dias do início antevia-se a impossibilidade de realizar os Encontros. Mas era assim todos os anos. Albano Pereira, reconhecido como um dos principais obreiros da iniciativa, comoveu-me pelo seu estoicismo, capacidade de resistência, entrega a um projeto cultural que eu próprio cheguei a criticar em termos benévolos sobre opções pontuais decorrentes de um certo "intelectualismo seletivo" em relação aos fotógrafos portugueses («sempre os mesmos», "os chamados"… como se dizia ao tempo). Beirão de gema, Albano definia-se como «uma mistura de granito e de água.» Na realidade, o seu esforço ultrapassava a trivial "carolice" tão portuguesa e ascendia a um plano incomum de sacrifício pessoal. Soube que pedia com frequência à banca empréstimos pessoais à conta do dinheiro prometido que depois não chegava. Era precisamente isso o que estava a acontecer na ocasião do nosso primeiro e único encontro pessoal. O Ministério da Cultura não cumprira a entrega da verba acordada em protocolo. Dessa vez o pretexto era a "desorganização de serviços" em consequência da crise governamental. O então ministro António Coimbra Martins, cuja assinatura era indispensável, desaparecera da circulação. Escusas também sistemáticas por parte de outras instituições e empresas por causa da "crise", que sempre dá imenso jeito para não pagar promessas. Invariavelmente começava-se por cancelar a impressão de catálogos porque a tipografia deixara de fiar. No final, todos ficavam muito felizes por os cortes se terem limitado aos catálogos, «mais uma ou outra coisa».

O LANCHE DO SENHOR MINISTRO (SUBITAMENTE INTERROMPIDO)

Impressionou-me conhecer a constante via sacra a que se sujeitava todos os anos a equipa de Albano Pereira, esmolando subsídios pelo concelho de Coimbra e também em Lisboa. A maior contrariedade, como se disse, era o dinheiro não aparecer a horas depois dos mecenas jurarem a pés juntos que jamais isso sucederia. Todos os anos repetiam-se as tristes cenas. Os autores representados nos Encontros e os próprios visitantes não podiam adivinhar a odisseia que representava para os organizadores pôr de pé aquele empreendimento.
Em Lisboa tentei recolher um depoimento do ministro faltoso. Estava certo que não o obteria por via telefónica, portanto fui bater à porta, na Avenida da República, tanto mais que já tivera com ele um encontro cordial, pouco tempo antes, por causa de um caso de censura cometido por uma associação de editores. Mas o senhor ministro António Coimbra Martins não estava. Uma menina do Ministério parece ter simpatizado comigo e disse-me recatadamente que talvez o encontrasse no outro lado da avenida, na pastelaria Versalhes. Costuma ir lá lanchar… Schiuu!... Lá fui. Não estava. Indaguei com discrição junto de um dos empregados de serviço às mesas. Sim, estivera, estivera sim senhor, mas já saíra na companhia de uma pessoa que entretanto aparecera. Ao regressar ao jornal soube que o Governo tinha caído. Mais um. Nesse tempo, os Governos caíam tão subitamente que os ministros nem conseguiam terminar o lanche em paz.




Portugal tem, desde sempre, magistrais artistas e repórteres fotográficos. A geração nascida no final do século e que começa agora a afirmar-se mantém nobilitado esse lastro.
Vejamos o que mais significativamente mudou.
Vai esmaecendo o conceito claustrofóbico de que uma fotografia de arte tem necessariamente de problematizar qualquer coisa. As diferenças concetuais, processuais, estilísticas são imensas, e a pluralidade é sempre salutar. As autorrepresentações de Jorge Molder coexistem pacificamente com as deslumbrantes imagens da denominada Fotografia da Natureza cujos autores pretendem tão-só (e é muito) revelar o desconhecido espetacular e encantar-nos (e conseguem-no). Justamente valorizado tem sido um outro género a que se convencionou etiquetar como "fotografia de rua", dantes chamado simplesmente "fotografia"… (mas reconheço que se diversificaram os géneros). Os amadores jovens de hoje terão dificuldade em acreditar que o fotógrafo de há meio século captava imagens de rua como se estivesse a praticar amores proibidos… mas é mesmo verdade.

DITOSO PAÍS QUE TAIS RELÍQUIAS TEM

Sou sensível aos patrimónios pátrios, sejam os naturais (tão menosprezados hoje) como os culturais. No que concerne ao património fotográfico nacional pode afirmar-se sem sombra de exagero que é dos mais valiosos da Europa. Longe vão os tempos, felizmente, em que eu perguntava ao arquivista-preservador-mor do reino, José Luís Madeira, como estava a situação dos acervos e recebia sempre a mesma resposta: «Continuamos à espera de regulamentação legal… e de instalações…»
Um jornal diário português de referência preserva na sua caixa-forte centenas (e centenárias) fotografias em chapas de vidro. Tive oportunidade de saber que tal género de património, nessa dimensão, tem escassa paridade à escala europeia.
No Porto, o Centro Português de Fotografia, para cuja criação em 1997 teve uma decisiva influência o ministro da Cultura Manuel Maria Carrilho, tem sob sua responsabilidade um total de 67 fundos riquíssimos e numerosas coleções. Destas, merecem especial referência a fabulosa Coleção Nacional de Fotografia, abrangendo mais de sete mil documentos fotográficos, e a Coleção de Câmaras, com preciosas raridades bem conservadas.
Em Lisboa e no âmbito da conservação e restauro de fotografias, o País conta afortunadamente com um técnico cuja proficiência não perde em confronto mundial: Luís Pavão. No Arquivo Fotográfico da Câmara Municipal de Lisboa têm vindo a produzir-se verdadeiros milagres. Os números do acervo são estonteantes: 350 mil imagens (93 mil já digitalizadas) cobrindo mais de 160 anos (desde 1850). Desse conjunto encontram-se já disponíveis para consulta em linha cerca de três mil, das quais 450 da autoria do lendário Joshua Benoliel. Poucos países poderão apresentar um tão retumbante palmarés.

AINDA O QUE MUDOU: «AS FOTOGRAFIAS TÊM PAI, FILHO…»

Seria impensável nos dias de hoje que uma reportagem fotográfica aparecesse publicada sem menção do autor. Os jovens repórteres deverão saber que nem sempre foi assim. Apenas no último quartel do século XX começou a aceitar-se, num processo iniquamente ronceiro, o fim do anonimato a que estavam condenados esses profissionais nos jornais e revistas. Em tempos mais recuados observaram-se exceções, porém confinadas às "grandes vedetas". Orgulho-me de ter sido um dos primeiros jornalistas em Portugal na luta tenaz e repleta de episódios indizíveis contra diretores e chefes cujas pias cabeças embrutecidas por estéreis rotinas repeliam com sorrisos broncos a ideia de o fotógrafo figurar numa reportagem a par do nome do redator. Antecederam-me nesse pioneirismo, ainda na transição dos anos cinquenta para sessenta, o excelso Augusto Cabrita e outros repórteres d'O Século Ilustrado, então dirigido por Francisco Mata (nomeio apenas Augusto Cabrita porque em justiça importa ficar lavrado ter sido ele – testemunhei – o primeiro a bater o pé). Nessa época eu praticava a subtileza de escrever no final dos textos, entre parêntesis: (Fotografias de Salvador Ribeiro) — era o fotógrafo que invariavelmente me acompanhava. Mas teria de ser no fim, porque se acaso figurasse no início daria muito nas vistas e o chefe Artur Inêz não consentia. Destaco outro renomado camarada, João Ribeiro, por meio de um texto saboroso de Maria Leonor Nunes: «Nem impositivo, nem exigente, com a subtil "malandrice" que gostava de confessar, dizia sempre em falinhas mansas ao gráfico: "as fotografias têm pai, filho", reclamando a assinatura das suas imagens».

NOVOS MEIOS DE DIVULGAÇÃO E DE ASSOCIATIVISMO

De volta à fotografia de arte. Restam pouquíssimos púlpitos sectário-opinativos. Quase todos afogaram-se no mar das profecias falhadas. Os primeiros a soçobrar foram os "salonistas" ao descobrir que havia mais mundo fotográfico para além dos salões. Os "integralistas" deixaram de ser mimados por uma certa crítica indefetível e reeducadora. Ainda antes da dobra do século assistiu-se à conversão miraculosa de gurus que começaram a apreciar voluvelmente as fotomontagens de Eduardo Nery — um «fotógrafo falhado que [recorria] a manipulações infantis». (Ah, Eduardo, o que nos rimos à socapa quando um deles te foi felicitar, efusivo, numa tua exposição em Cascais! Revivo o teu riso, no final: «Viste o descaramento daquele sacripanta?!»).
A divulgação da fotografia na televisão também seria algo de inimaginável, mas ei-la na TVI24: Fotografia Total, um programa precursor com realização de Luiz Carvalho que também assina a autoria com a jornalista Fernanda Pedro.
O associativismo fotográfico tem vindo a reformular-se num sentido intelectualmente abrangente, integrando por vezes as artes visuais num todo harmónico e assumindo o conceito e denominação de "Grupo", de facto mais consentâneo com os hábitos modernos — uma realidade evidenciada, cada vez mais, pelo tipo de intercomunicação social e cultural por meio da Internet. Seria obviamente impossível a existência, hoje, de uma associação fotográfica com um milhar de associados ativos como chegou a acontecer em Portugal nas décadas de sessenta e de setenta. Nesse tempo, porém, também havia uma revista de Fotografia (uma das quatro publicações periódicas da especialidade que tive o gosto de fundar e dirigir) com tiragens de oito mil exemplares, cerca de um terço do que fazem agora alguns jornais diários…
Em contrapartida, é autenticamente avassaladora a presença da fotografia de arte na Internet, em geral patenteando um grau de qualidade muito elevado.

MAIORIDADE DA FOTOGRAFIA NÃO CHEGOU ÀS INSTITUIÇÕES DE ARTE

Então, tudo corre bem? Não.
Em relação aos artistas, a visibilidade das suas obras está praticamente confinada à Internet. Produzem diferença, é justo ressalvar, uma instituição bancária (BES), o Centro Português de Fotografia (com uma programação regular e qualificada) e raras galerias e espaços municipais. Numa perceção global, os fotógrafos continuam a ser uma espécie de apátridas do mundo artístico. O status cultural da arte fotográfica, adquirido oficialmente no século passado, demora a ser perfilhado pelas instituições nacionais vocacionadas para as exposições artísticas. Creio que foi em 1988 que pela primeira vez uma personalidade política portuguesa se congratulou publicamente por ver a fotografia de arte reconhecida como expressão cultural, ao lado da literatura, da música, do cinema, etc. Fui testemunha. Aconteceu na primeira Feira das Indústrias da Cultura, realizada na antiga FIL, cuja administração me convidou para integrar o comissariado artístico. A personalidade citada, Teresa Patrício Gouveia, então secretária de Estado da Cultura, naturalmente cativou os fotógrafos presentes com as palavras de veemente louvor à organização por não ter esquecido os artistas fotográficos. Volvido um quarto de século, é desolador observar o retrocesso. Cada vez que um artista fotográfico tem a veleidade de entrar em certas vetustas instituições nacionais está condenado a descer aos infernos da displicência. No conjunto das artes em geral, as maiores instituições de vocação artística, ditas nacionais, continuam a negar à fotografia o estatuto de maioridade.
Rejeição que raia a hostilidade aberta como aconteceu em 2012 com um projeto da autoria de um coletivo de quatro fotógrafos portugueses. "Ruínas" era (é) o título dessa iniciativa de superlativo valor artístico e documental. Quatro autores, quatro olhares, quatro formas de ver/viver a Fotografia.
Partiram em viagem de descoberta, calcorrearam «pedras antigas, paisagens fantásticas ou solitárias, pórticos, templos, edifícios, sonhos, fantasias, caminhos, passagens». O resultado dessa viagem foi um acervo de dimensão incomum, artístico e documental, que após a indispensável depuração se converteu num projeto de exposição fotográfica, apresentado à Sociedade Nacional de Belas Artes (SNBA). Tudo confiado em esmero e planeamento inexcedíveis, incluindo protótipos dos originais e um vídeo com várias hipóteses expositivas, o qual constituía, por si só, uma obra de arte.
Passaram os meses. Muitos meses. Sei que os autores diligenciaram formalmente por duas vezes obter informações sobre uma eventual decisão, mas a impada SNBA não se dignou responder. Não havia interlocutores a esse nível tão raso da Fotografia, sequer um educador de infância que, por mera cortesia, a SNBA deveria escalonar para projetos da pré-primária. Perante o mutismo indecoroso que se prolongou por cerca de um ano, os autores decidiram levantar o material. Acabaram por prestar um favor à direção da SNBA que, optando pelo silêncio grosseiro, se eximiu à reprovação pública acaso viesse a saber-se mais tarde que tinha desprezado uma realização artística de incontroverso mérito, cujos autores, porém, cometem o pecado de se assumirem como artistas que fazem uso de câmaras fotográficas.
Curiosa coincidência: na mesma semana em que se esgotou a paciência deste coletivo de fotógrafos portugueses, um outro fotógrafo, também português, Jorge Molder, viu uma sua fotografia incluída na Coleção de Arte da UNESCO, na qual figuram obras de Picasso, Miró e Henry Moore. A distinção foi interpretada pelo antigo ministro da Cultura, Manuel Maria Carrilho, como «um reconhecimento internacional da Fotografia portuguesa.» Suprema ironia: lembro-me que a primeira exposição de Molder, realizada há cerca de 40 anos, fundava-se num esteticismo fotográfico de locais abandonados, em ruínas, precisamente a temática do projeto do atual coletivo de fotógrafos que lhe deu, aliás, precisamente o título "Ruínas"…
O caso da SNBA não é único. Na quase totalidade das instituições nacionais congéneres, a arte fotográfica continua a não entrar. Em algumas, decididamente, seria mais fácil um camelo passar pelo buraco da agulha.




Apertemos os cintos. O futuro tornou-se uma vertigem. Cada vez mais indecifrável. Uma nova geração de artistas fotográficos portugueses, retemperada nos últimos anos com uma imagética indissociável do advento de tecnologias que nos assombram todos os dias, continua a guiar-se pelo princípio da sageza do olhar. O olhar. Tudo mudou, tudo mudará, permanece o olhar. Há algo de ingénito ou subliminar nesse olhar fotográfico, nesse olhar sábio que não se aprende em cursos nem é colírio que se venda nas farmácias. Glosando Sophia de Mello Breyner, apetece dizer que os nossos jovens fotógrafos não estão a cometer o erro do turista desatento que «anota / mas não vê». Não me filio na opinião ultimamente expressa de que o progresso tecnológico leva à renúncia da criatividade individual. Isso seria aceitar o erro, sem alternativa, do turista que anota mas não vê. No entanto, é um facto que a fotografia digital está ainda numa espécie de "idade da inocência". Será cedo para previsões infalíveis, tanto mais que a imprevisibilidade é a única certeza que podemos ter quanto ao futuro…
Resta-nos acreditar que sempre dominará, amanhã como ontem, a sabedoria do olhar. A Fotografia requer uma aprendizagem do olhar, insubstituível por qualquer tecnologia. Nietzsche, de quem se desconhece o que pensaria sobre a então recente invenção da Fotografia, dizia ser essencial "aprender a ver". No mesmo sentido, um século depois, numa elaboração mais pedagógica e relacionada com a compreensão (ou captação) das imagens, Simone Weil escrevia que saber olhar é um «método de exercer a inteligência». Roland Barthes – um homem de palavras – lamentava-se por não haver uma História dos Olhares.
Nesse olhar fotográfico fundem-se instantaneamente numerosos elementos e situações: intuição do tempo e do espaço, perceção estética, ponto geométrico de captação, perseverança e ainda um outro, imponderável, que dá muito trabalho: o acaso... Escusado correr atrás das imagens: ou elas nos encontram e nos contam ou é comboio perdido. Todo o fotógrafo já viveu a sensação de permanecer num apeadeiro, por vezes longo tempo, à espera de um comboio sem horário de passagem. Mas sempre aparece, seja na rua ou no estúdio.
Com as novas asas da acessibilidade, da perfectibilidade, da portatibilidade e da imediatividade aumenta a exigência do olhar, da sabedoria do olhar. Todos podem ser fotógrafos neste mundo superpovoado de equipamentos prodigiosos que ironicamente nos transportam para os primórdios do comércio fotográfico, quando o inventivo George Eastman publicitava: «Você carrega no botão, nós fazemos o resto». Susan Sontag, nos seus notáveis Ensaios sobre Fotografia (Quetzal) foi a primeira a alertar: uma das consequências da híper-abundância de artefactos visuais poderá levar a uma progressiva perda de sensibilidade [visual] face às imagens.
O mítico "momento decisivo" foi sempre o olhar decisivo. Não cessa de reduplicar. Estaremos cada vez mais perto da utopia de Richard Avedon, o retratista de «pessoas que nos olham nos olhos». Num dia de confidências sobre a sua arte, o célebre fotógrafo nova-iorquino escreveu: «A máquina é quase sempre um estorvo. Se eu pudesse fazer o que quero, com os olhos apenas, seria feliz».

Talvez um dia…?